segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

OS ANOS LOUCOS DE LUANDA I

O  SUICIDA

J. Sá-Carneiro                          Cascais,  24. 07. 2007 .            (Mem.)

Dizem que os "Anos Loucos de Luanda" começaram em Fevereiro de 1961, com o assalto à Brigada Móvel da estrada de Catete.   E que terão acabado no fim de 75, com a independência de Angola.

...Mas para mim não. Os "anos loucos" começaram bastante mais cedo, ainda a meio da década de 50, com a descoberta do petróleo e inicio de sua exploração, que encheu Luanda de técnicos estrangeiros, sobretudo belgas e franceses, acompanhados de lindíssimas mulheres, umas esposas outras não, vestidas (...ou despidas) de maneiras que nunca tínhamos visto ...e que nos provocavam, evidentemente, toda uma série de "momentos anormais de meditação".

...E claro que, com o petróleo, começaram a chover os ataques politicos internacionais, de várias espécies e proveniências, que nos levavam a imaginar o que seria o "negrume" do próximo futuro naquela terra tão querida.

Outra contribuição para o nosso desvario foi, mais ou menos na mesma altura, a independência do Congo Belga: Novas ameaças politicas e económicas para os tempos que vinham, ...e nova revoada de beldades, refugiadas, que chegavam antecipando os maridos, ...e que se tornaram noutro atentado aos nossos austeros costumes!

...Mas, do muito que se passou, só vos vou contar agora uma única história.

...As outras ficam para depois, à medida que as for recordando.

...Creio que conheci o Gaston Bossuet no bar da Versailles. Dirigiu-se a mim para perguntar onde eram os escritórios do "petróleo",  pois tinha sido colega, no liceu belga, do engenheiro Brognon, e queria tentar pedir-lhe um emprego na Petrofina, que estava em plena expansão.  ...Eu, por acaso, conhecia o engenheiro, e prontifiquei-me a ajudar a procurá-lo.

O Gaston, era duma simpatia alegre e comunicativa, belga valon, grande e forte, fazia lembrar o John Wayne, ...mas com um ar mais prazenteiro. ...Até dava gosto ajudá-lo. E teve tanta sorte que uns dias depois lhe foi entregue a carpintaria da Companhia, pois que a sua especialidade como empreiteiro no Zaire tinha sido exactamente madeiras...

Não mais nos perdemos de vista, e a nossa amizade durou por aqueles anos todos.

Tinha uma esposa, a Loulou, filha de portugueses do Kikuit, com menos vinte anos do que ele, que falava ambas as linguas com sotaque arrevessado e quase irritante, mas na verdade também muito simpática e alegre, e que para mim foi sempre uma boa amiga.

Tinham um filho, de dez ou onze anos que, não sei porquê, usava um "petit nom" espanhol, o Joselito.

Essa "familia refugiada" rapidamente se tornou extremamente popular, e o nosso grupo de malucos ( Que no fundo sabia estar a viver os ultimos dias de Pompeia ) acabou por fazer do apartamento dos Bossuet a base estratégica de ataque, e ponto de partida, para toda a ininterrupta série de disparates, que parecia nunca ter fim, e que foi preenchendo todos aqueles anos.

...Era ali que tudo se projectava! ...Histórias aparatosas que mais tarde contarei.

Efeméride atrás de efeméride, muita água foi descendo o Rio  Bengo,  ...até que um dia a Loulou  fugiu com o Bertrand.  ...E foi um horror! ...O nosso "gang" completamente desorganizado, com o Gaston a dizer que se suicidava... Que assim não podia viver!

O Bertrand era um técnico da Schlumberger, ...que até nem tinha muita graça, mas vá-se lá entender as mulheres! ...Acabámos por descobrir que tinha sido transferido para Madagáscar, ...e eu escrevi à Loulou ...a pedir que voltasse.

...Ela porém não voltou. ...Respondeu-me com prontidão, mas a dizer que estava ainda muito apaixonada pelo Bertrand, e que o Gaston era muito velho para ela. ( ...Já o era antes, claro! )

Nessa altura veio-me à memória uma história que ela me tinha contado, sobre o dia do seu próprio casamento, lá no Congo: Parece que o Gaston tinha tido uma tremenda despedida de solteiro e acabou por entrar na igreja com uma fortissima ressaca. ...E depois, é cláro, continuou a beber a festa toda e, quando ela o empurrou para a cama, imediatamente... desatou a ressonar. ...E ela dizia-me que "francamente não podia admitir que a minha noite de núpcias fosse passada a ouvir o meu noivo ressonar. ...E então fiz tudo o que era possivel para acordá-lo. Despejei-lhe água na cabeça, cheguei-lhe amoniaco ao nariz, sacudi-o e arranhei-o. ...Mas nada!

...Até que tive uma ideia, e berrei-lhe ao ouvido: Foge Gaston que vem aí o meu marido! ...Então abriu os olhos espantado, atirou-se para o chão, arrastou-se até à janela ( Felizmente era um rés do chão) e mergulhou no canteiro das roseiras. ...Foi a única maneira de ter marido!"

Duas semanas depois, ao chegar a casa dele, vi que a porta estava aberta. Entrei, e qundo cheguei à sala, dei com este trágico espactáculo:  Facturas e garrafas espalhadas por todo o lado, cadeiras partidas, ...e o Gaston estatelado no sofá, com os olhos fóra das órbitas ...e um grande revolver encostado à cabeça!

Devo ter ficado mais de um minuto parado a olhar para aquilo, ...e depois comecei a chegar-me, mas muito devagarinho.

...Nem sequer estava grosso, ...apenas louco!

Lá acalmou, e começou a explicar-me a situação. ...Não podia viver sem ela, ...e, era claro, tambem não conseguia trabalhar. As dividas tinham-se acumulado, a Petrofina dera-lhe ordem de despejo das oficinas, e já não tinha dinheiro para comerem , ...ele e o filho. ...A total desgraça.

Então comecei a dizer-lhe que a solução era voltar para o Zaire, onde tinha vivido desde muito novo, quando fugiu da Europa em guerra. ...Lá sempre conhecia patricios, e até a familia portuguesa da Loulou  tinha dito que estava disposta a ajudá-los.

Disse-me que não era capaz de chegar a Leopoldville ( Agora Kinshassa ) ...Uns bons oitocentos kilómetros. ...Só se eu o levasse!

Mas eu não podia. Tinha serviço urgente nas alfândegas. Era impossivel partir antes de uma semana.  Disse-me que os credores voltavam na manhã seguinte e que não tinha cara para aparecer ao Brognon. ...Que precisava de se escapar imediatamente.

...E também já não tinha automóvel!

Tive que usar de toda a minha persuasão:  "Gaston, não posso ir agora ao Zaire" ( De resto até que a fronteira estava fechada para os portugueses, pois foi na altura em que tinham pegado fogo à embaixada de Portugal, julgo que isto se passou em 1972, no tempo do embaixador Pinto da França, e não tinhamos relações diplomáticas. Durou pouco tempo esta situação, ...mas por azar foi nessa altura.) ...E disse-lhe: "Tudo o que posso fazer é levar-te para a nossa fazenda nos Dembos. Aí não te falta nada. Ficas uma semana à caça com o teu filho, e na quarta-feira vou ter contigo e acompanho-te a Kinshassa.

...Quanto a automóvel, tens aí à porta o carro do R.T. ( Um 'amigo' que tambem andava atrás da Loulou e que parece que tinha ido à Europa. ) Vais nele, pois tens muita bagagem e precisamos de dois carros, e depois o teu 'amigo' que o vá lá buscar".

Aceitou, e nessa mesma noite pu-lo no "Kissocolo", a 160 kilómetros, nos Dembos.

Mas, na madrugada seguinte, antes de voltar para Luanda, levei-o à roça Kinuma-Numa, de um bom amigo alemão chamado Karl Eberl, a quem pedi para dar apoio ao Gaston.

Deixei-lhe uma 375-Magnum para ir à caça e disse-lhe, a brincar, "se te quiseres matar é com esta, porque com o teu revolver ainda ficas a bater com a cabeça pelas paredes"

Na 4ª feira da semana seguinte fui ter com eles às bombas de gasolina do Pompílio das Neves, às portas de Quibaxi. Encontrei-o já felizmente muito calmo, a jogar xadrez com o filho, em cima do capot do automóvel. ...Desfez-se num sorriso ...e seguimos para o Zaire.

Lá fomos, pelo Uige, 31 de Janeiro, creio que por S. Salvador, ...até Maquela do Zombo. Sempre pelo asfalto, pois Angola já tinha todas as capitais de distrito ligadas por asfalto. Em Maquela fui à PIDE dar as saidas nos passaportes. Mas aí eles disseram-me que o Gaston e o filho, como belgas, podiam passar à vontade, mas que eu, "nem pensar". Por eles, tudo bem ( só me aconselhavam a deixar a pistola no posto da fronteira ). ...Mas que a policia congolesa não me deixava entrar, com certeza..

E assim foi.  Atravessámos a fronteira em Quimbata ( Do lado de lá é Kipango ). Eu conhecia tudo, porque quando casei, em vésperas da independência do Congo Belga, tinha ido passar a lua-de-mel a Leopoldville, que para nós naquele tempo era ...Paris.

...Mas, em Kipango, um português, ...nem pensar em passar!  ...Não havia relações.

...O Gaston começou a dizer que também não ia.  ...Que sozinho não era capaz..

"Gaston, vai andando, que vou tentar sair por Banza Sosso e apanho-te no Inkise".

...Mas não tinha certeza nenhuma. Não conhecia essa outra fronteira. Unicamente sabia que era um posto que, de noite, retirava a guarda. ...E era nisso que estava a apostar.

...Mas quando lá cheguei, umas horas depois, tinham tirado a ponte de ferro do riacho, e estavam a pintá-la no cais. Vi, do nosso lado, a guarda congolesa fechar o posto e ir dormir para a sanzala. ...Porém lá estava o rio. Talvez com dez ou doze metros de largo, e menos de um metro de fundo, ...o suficiente para o Volkswagen não passar.

...Mas, sentado ali, do nosso lado, a olhar para mim com um sorriso, estava um velho capita, que tinha certamente a escola toda. Quando me dirigi a ele, disse-me logo: "Já estava à tua espera! Passas ali em baixo, que tem pedras. Leva estes rapazes para empurrar e dá mata-bicho. ...Boa viagem".

O Volkswagen passava os riachos de marcha-à-ré porque as rodas tractoras eram as de trás, e agarravam logo. ...Só era preciso o motor ir de prego a fundo, para não entrar água pelo escape.

Perguntei aos rapazes onde passava a estrada de asfalto Matadi-Kinshassa, e disseram-me que estava já ali à frente, ...mas afinal eram mais de cem quilómetros, quase tudo areia. A dada altura comecei a atravessar uma região esquisita, de descampado, e onde se misturavam cubatas com tendas de lona verde, e muita gente mais ou menos fardada.

Mas não vi armas. ( Na manhã seguinte fiquei a saber que tinha atravessado os campos de refugiados da UPA - FNLA ) ...Foi meia hora depois que me enterrei.

Comecei a forçar atrás e à frente, ...nada. Cada vez ficava pior, e já estava a anoitecer. Então passei à velha técnica do mato, de levantar uma roda de cada vez, com o macaco, e de meter calços por baixo. Mas não havia pedras. Tinha que ser com gravetos. Havia uma sanzala na lonjura e uns garotos vieram ajudar. Traziam uma pá, ...e ajudaram: Mas, quando uma roda começou a escapar eles tentaram calçá-la com a pá. Foi um estampido enorme e fiquei sem pneu. ...Quando olhei em volta já não vi garoto nenhum. Nem pá, ...nem nada. Tinham-se assustado e debandaram.

Bom, que remedio? ...Comecei a meter a roda de socorro. E, quando estava tudo pronto, apareceu um enorme camion atrás de mim.

Então começou uma conversa maluca. Eu falava francês com o chauffeur. ...E ele falava português com a duzia de camaradas que trazia em cima da carga, que de resto estavam a ver a matricula de Angola no meu carro. ...Acabaram por pegar no VW em peso e foram pousá-lo vinte metros à frente, no piso já duro. ...Perguntei ao chauffeur se era de dar um pourboire, mas ele disse que era complicado. ...Melhor eu parar numa tasca uns kilómetros à frente e pagar uns copos. Encontrei a tasca e esperei meia hora, ...mas devem eles ter-se enterrado. ...Bebi eu, ...e fui andando. Às duas da manhã estava em Kinshassa, em frente do Hotel Memeling. A casa dos Moniz, primos da Lou-lou, era na esquina oposta. ...Só que ninguém podia entrar. ...O guarda, que dormia na rua, à porta da casa, não tinha chave, claro. ...E o Gaston e o Joselito estavam a atirar pedrinhas às janelas do 1º andar. ...Mas não conseguiam acordar ninguém.

Havia um bar aberto nas imediações, e fomo-nos lá instalar. Estava animadíssimo, e logo nos arranjaram cerveja, e bem gelada, por acaso. ...E às tantas estoirou uma briga.

Um rapaz preto, muito alto e bem vestido, com um folar de seda amarela ao pescoço, veio para nós a queixar-se dum grego que estava ao balcão e que o tinha aldrabado num negócio. Apresentámo-nos. Como eu me chamava José e o Gaston, Gaston ...e ele se chamava José Gaston, achou graça e esqueceu-se do grego. Sentou-se à nossa mesa e ofereceu os seus préstimo em Kinshassa. Era sobrinho de um ministro e, durante o mês que lá estive, convidou-nos para imensas farras.

Conseguimos manter o bar aberto até nascer o dia, e então lá entrámos em casa dos Moniz. Era uma familia simpatiquíssima. Tudo homens. As senhoras tinham sido há muito evacuadas para Portugal. ...Ou para a Bélgica, já não sei. Tinham ficado o Pai, filho e sobrinhos. O filho era o Tony, natural de Leopoldville, falando as quatro linguas ( Francês, português, bakongo e lingala ) ...e com a "teoria toda do veterano" do Congo. Passei com ele, nas semanas que se seguiram, por uma série de cenas das mais pitorescas e bem divertidas. E com ele fui, logo no dia seguinte, arranjar emprego ao Gaston e matricular o Joselito no Colégio Belga. ...Fomos também para as alfândegas despachar tecidos, pois era esse o negócio ( E bom negócio! ) da familia. Todo o rés do chão do prédio era um grande armazem de tecidos.

Pelo fim da tarde fomos buscar o Zé Sotomayor, que eu já conhecia de Luanda, pois era irmão de um grande amigo meu, e com ele fomos visitar o Zé Real, que tinha um stand de automóveis de luxo. ...E aí começou o disparate:

Quando o Zé Real pediu bebidas para o stand, ela apareceu, de mini-jupe e bandeja de prata, com o balde do champagne e as taças, e o sorriso mais generoso que se possa conceber.

...Era giríssima! ...Com aquele tom de pele e o cabelo castanho acobreado, que sempre me punham em órbita. ...Francesa, ...vim a saber pouco depois que tinha 24 anos e escapara ao marido, uma semana antes, no ultimo ferry que atravessou o rio Zaire, antes do corte de relações com o Congo-Braza.

...E o marido agora, a pouco mais de mil metros, ameaçava, pelo telefone, que a vinha buscar. ...Mas claro que tinha que o fazer por Paris e Bruxelas, pois não havia outra maneira de passar o rio.

Fomos todos jantar. Nós e mais três ou quatro amigas belgas, que conseguiram finalmente pôr o Gaston às gargalhadas. ( Os restaurants de Kinshassa, a pesar de tudo vir de Bruxélas, funcionaram sempre muitíssimo bem ) ...Comeu-se e bebeu-se maravilhosamente. ...E depois fomos dançar para a boite do "Okapi".

O Hotel Okapi, que julgo ter sido construido já depois da independência do Zaire, era agradabilíssimo. Moderno e espaçoso, tinha bons salões, óptimos bares, e uma estupenda piscina.

...Só duma coisa não gostei: Os candeeiros das mesas da boite eram patinhas embalsamadas de okapi,.a suportar os abat-jour's. ...Mau gosto!

Chamava-se Nicole e, quando fui dançar com ela, não me castigou. À terceira dança disse-lhe que tencionava dormir no automóvel, para partir na madrugada seguinte. Objectou logo que nunca! ...Que eu podia dormir no apartment dela. ...E assim foi ...e por todo aquele mês. ...Graças a Deus! ...A cama estva metida numa espécie de alcova na parede. Confortável. ...Lembro-me que na manhã seguinte, já tarde, quando ouviu o criado, que tinha a chave da porta, a remexer na cosinha, saltou da cama, deu as suas ordens, e voltou, a dizer: "Ce type-là, que toute la semaine m'a appelé de Mademoiselle, est aujourd' hui à m' appeler Madame! ...Pourquoi?" ...Nunca me esquecerei!

Ao terceiro dia estava completamente apaixonado ...Se não estivesse casado com a mulher mais querida ...e mais gira do mundo, ...tinha-a trazido para Angola! ...Foi talvez a mulher que, mais me impressionou na vida, ...depois da minha!

Quando, à tarde, quis voltar a casa dos Moniz, um sinaleiro mandou-me parar e deu-me voz de prisão: "O teu carro tem matricula estrangeira e a tua carta não é internacional."

Ele ainda não tinha visto a minha carta. Lá a mostrei: "International! Couleur de rose, Permis de conduire". ...Mas não: "A internacional era maior! Estás multado em 100 Zaires!" ...Já não me recordo do câmbio, mas era muito. De maneira que lhes disse ( Nessa altura já eram dois) Aqui não tenho, ...mas vamos ali a casa buscar. "Onde é?" É ali mesmo no fundo, respondi. É a casa de M. Moniz. Deviam conhecer o nome porque disseram logo: " Ali não podemos ir. É outro bairro. Quanto tens aí?" Dez Zaires, respondi. " Ça vat." ...Entraram para o VW, para receber, ainda me cravaram meio maço de cigarros, e depois, enquanto fumávamos, estivemos os três à conversa..

Uns dias depois, quando cheguei a casa dos Moniz, um deles estava à porta do magazin. Mas não era à minha espera. Era à espera do Tony Moniz, que ele dizia que tinha passado no "Feu rouge" e estava multado. Eu subi e perguntei ao pai Moniz se podia ajudar em alguma coisa. Respondeu-me que não valia a pena. O Tony arrumava já o assunto. E arrumou!

Quando, da varanda , vi chegar o Tony, tornei a descer para assistir à conversa. Logo que o sinaleiro começou a falar na multa, o Tony de repente lembrou-se dele e disse-lhe "Tu és aquele policia a quem dei cem Zaires para prorrogar a minha carta. Onde é que está a carta?" Ficou um bocado desconcertado porque, como a coisa já ia em mais de um ano, não esperava que o Tony se lembrasse da cara dele. ...Mas não se desmanchou: "A culpa não foi minha. A culpa foi daquele chefe que roubou a esquadra e, antes de fugir, pegou fogo ao arquivo. ...E a tua carta ardeu!" Aí o Tony abriu a porta do magazin e estava a mandá-lo entrar, quando apareceu o outro, que tinha ficado a espreitar da esquina. Entraram os dois, e ficaram de olhos esbugalhados a admirar as peças de tecidos. Podem crer que era na verdade comovente. "Gostas? Perguntou o Tony. Estás aqui amanhã com uma carta nova e tens uma peça para um fato civil para ti e um corte de seda para a tua miuda". ...E disse para o outro: "E tu vais receber outro corte de seda, para trazeres cá o teu colega". ...E assim foi.

Uns dias depois mostrou-me o novo "Permis de conduire".

...Não há dúvida de que a África pode sempre funcionar em "boa vontade e simpatia"!

...E acho que o resto do mundo também! .

Passámos o sábado seguinte a fazer ski aquático no Zaire. Era uma maravilha! Havia muito crocodilo, mas eles diziam que no meio do rio o crocodilo tinha mais medo do que nós, porque uma milha abaixo, são os caldeirões, com quedas abismais e, se o crocodilo se deixa levar, acaba esmagado lá embaixo.

No meio do rio há umas ilhas de areia branquinha que fariam inveja a qualquer praia de luxo. Era daí que se arrancava de ski. E eu fiz sucesso a largar em mono, de trotinette, que eles lá não usavam. Unicamente era necessário contar sempre com dois ou três barcos, com bons motores porque se alguém caia, e não era imediatamente socorrido, logo a corrente o apanhava e ia ter nos caldeirões a sorte do crocodilo. Contavam-se histórias de vários desastres. ...E eu por acaso até tinha conhecido uma das vitimas: O antigo consul da Alemanha em Luanda.

Foi tão bom que no dia seguinte quisémos repetir. Porém, quando chegámos ao Clube Naval, não pudémos entrar. Estava tudo cercado por um cordão de gendarmerie, e só se viam pistolas-metralhadoras. ....Ouviam-se vozes de comando, ...e até blindados havia cá fora. O Tony começou a fazer perguntas, e logo se soube o enredo todo: A Prisão Central de Kinshassa ficava à beira do Rio e ali, a escassos metros, do Clube. Havia presos de todas as condições, mas entre outros, um grupo muito importante, de que faziam parte vários "zairois" riquíssimos, uns libaneses, um grego e até um português.

O zairoi mais importante até tinha mandado instalar ar-condicionado nas celas (tinha a dele e mais duas que alugara.). Também, quando lhe apetecia, requisitava escolta para se passear de Mercedes Pulman pela ruas da cidade, e depois trazia para a Prisão dúzias de convidadas.

Como nunca mais se processava o julgamento, ele tinha dado às autoridades um prazo para se despacharem. ...E o prazo terminara na véspera e não foi concedido nem um minuto mais. ...Todo o grupo tinha desaparecido! ...E a Policia estava convencida que a fuga se dera pelo rio, em barcos do Clube Naval.

Como não havia ski, o Tony resolveu ir mostrar-me o Parque da OUA, onde o Presidente Mobúto tinha as suas instalações especiais de trabalho, tudo em vidro, debruçadas sobre os caldeirões do Zaire ...Tudo aquilo deslumbrante! O Parque, repleto de árvores e plantas raras, era todo feito de desníveis, fontes e pavilhões, tendo em todo o seu redor um gradeamento, que diziam de sete quilómetros, com grades de lança, douradas, iguais às de Versailles, e importadas de França em Boeings.

No meio daquilo tudo uma jaula de cúpula doirada com o símbolo do Congo:  O Leopard do Presidemte. ( Como se sabe a instituição mais pretigiada do Zaire era a "Ordem do Leopard", fundada pelo próprio Mobúto, que sempre usou o competente barrete de pele.)

Estávamos a fazer a visita acompanhados por um policia especial do presidente, um lingala enorme, com talabarte de coiro branco e um grande Colt num coldre à cow-boy, pois os primeiros tinham sido treinados nos U.S.A. ....A visita levada muito à séria.

O leopard estava a dormir ao sol e o Tony, por mais que o chamasse, não conseguia acordá-lo.   ...E então resolveu meter a mão na jaula e dar-lhe uma palmada!   Boa ideia!

O leopard deu um urro e um tremendo salto até ao teto, ...e, não sei como, o Tony apareceu de repente ao colo do lingala, que estava a olhar para ele com um ar muito espantado. Apanhei um susto, pois o bicho era o Símbolo do Congo, e tudo podia dar em asneira. O policia pôs o Tony no chão e começou a ralhar em lingala. ...O Tony enfiou-lhe um dedo na barriga e respondeu-lhe na mesma lingua. ...Não sei quais foram as graças, mas o policia começou a rir, e tudo ficou em bem.    Acabámo os três a beber umas cervejas escondidos atrás das plantas exóticas.

...O Parque da OUA era na verdade uma maravilha!

Os almoços, em casa dos Moniz, arrastavam-se, para os que não tinham horário de trabalho, até às 3 e 4 da tarde. ...Mas depois, até às 6, eu não tinha nada que fazer e, em geral estava calor demais para passear a pé. ...Também não havia grande coisa para ler, alem dos jornais. Então instalava-me numa das varandas, a do lado da sombra, em frente do "Memling", e ficava a desfrutar o panorama, ...e era giro. A diversidade de raças e trajes, os penteados, de mulheres e garotas, com missangas entrançadas, ...e as estranhas atitudes de quase toda a gente.                                                                                                                           ...Mas o grande actor daquela "cena" era sempre o Gunza!                O Gunza era um Senhor Preto, enorme, suponho que sócio do Hotel ou, pelo menos clinte de honra. ...Chegava numa limousine Mercedes preta, mas que ele próprio guiava. Não arrumava no estacionamento. Antes deixava o carrão, às três pancadas, no meio da rua, e com a porta aberta. Vinham logo a correr uns garotos, com trapos e um balde de espuma e começavam a dar brilho ao carro. ...O Gunza ia abancar no bar ...e era sempre um show! E eu algumas vezes não resistia à curiosidade e ia lá baixo ver o que se passava, pois as gargalhadas eram cada vez mais altas. ...Ele tinha sempre que embirrar com alguém, e lembro-me duma vez em que quem estava na berlinda era um jornalista, creio até que conhecido. Era calvo e tinha uns óculos muito grossos e um ar intelectual, em preto. ...E o Gunza arengava: "Tu, lá no teu jornal, escreveste que quando veio cá a embaixada do futebol da França, eu os recebi no meu hotel com o ar condicionado avariado! Então quando eles jogam foot-ball, lá no meio do campo, têm ar condicionado? ...Jogador tem que treinar!"

Recordo-me que tinha uma sirene no Mercedes com um toque que até fazia tremer. ...E quando deixava o bar do Memling, ligava a sirene até virar a esquina, e meia centena de miudos corria atrás do carro. Espectáculos do quotidiano citadino congolês!

Outro espectáculo com interesse foi o do ladrão: Comigo a olhar da varanda, extraiu-me os quatro tampões do VW, que estava parado em frente da casa. Eu ia dar um berro, mas um velhote que estava ali perto fez-me sinal para estar calado. O ladrão, rapaz dos seus vinte anos, andou uma duzia de metros, não mais, desenrolou uma esteira e pôs-se a polir os tampões. Depois dispo-los sobre a esteira e sentou-se ao lado a vender. ...Aí eu fui lá abaixo. ...Mas o camarada que me tinha feito sinal atravessou a rua e aconselhou-me: " Como ele sabe que são teus, vai vender-tos baratos. Mas não lhe digas que tos roubou. Diz só que precisas dos tampões. ...E pronto!  Era assim em Kinshassa.. ...Nunca mais usei tampões em África. Até tenho um amigo que chama a isso a "transformação técnica S. T." (... Sem Tampões.)

Às seis e meia da tarde ia quase sempre encontrar-me com a Nicole num barsinho chamado "La Barrique", de um casal francês muito simpático, e por lá ficávamos a namorar até anoitecer. ...Nunca uma mulher tão nova me tinha despertado tanta curiosidade! ...Hora após hora, não parava de lhe fazer perguntas, e tudo nela me maravilhava. ...Era totalmente singela ...e verdadeira. ...E também ela , a mim, me analisava até ao fundo do meu sentir ...e da minha memória, ...cada vez mais deliciada com as historietas bizarras que lhe contava, e que, na verdade, foram sempre a minha parva vida no trópico. ...Parecia ter o dom de me fazer esquecer os vinte anos que tinha a mais do que ela. Era imenso o que tiravamos um do outro. ...E depois, pelo correr das noites também.

...Mas toda a felicidade tem um fim! ...E eu não podia ficar mais tempo em Kinshassa.

Assim acabou por vir o dia da partida. O Tony e o resto do grupo organizaram uma festa de despedida, donde só saí depois da meia-noite. Tinha resolvido viajar de noite, pela fresca, até ao Inkise, para depois, durante umas horas, descansar no carro, à sombra das árvores, pois aquilo era tudo floresta.

Mas, quando passei por baixo da colina da "Diviniere", lembrei-me que não me tinha despedido do meu amigo Geraldo, um jovem italiano que geria o restaurante do "Okapi".

Fui encontrar o hotel animadíssimo, com uma missão qualquer, holandesa, de que faziam parte muitos casais.  ...E ainda andei a dançar até às duas da manhã.

Dormi de facto umas horas ao nascer do dia, à entrada do Inkise, e acordei cercado de raparigas congolesas, que deviam estar a espreitar, para dentro do carro, se eu estava morto, ou vivo.

...Bonjour Demoiselles, ...e ensinaram-me outro caminho, para não tornar a atravessar os campos de refugiados.

O regresso a Luanda quase não teve história. Antes de chegar à fronteira passei quatro ou cinco riachos "a vau", mas havia sempre alguém para ajudar. A dada altura perdi-me no mato, e fui tirado de embaraços por um senhor congolês, de pijama de seda encarnado, que me disse ser o "douanier" dum posto qualquer da fronteira, quase sempre deserto, por onde ele costumava atravessar, para ir passar as férias clandestinas à Ilha de Luanda, na casa de um douanier angolano, que eu por acaso conhecia.

...E foi por aí que eu atravessei.

Parei em Maquela só para apanhar a pistola, no fim da noite dormi mais umas horas no carro e, no dia seguinte, à hora do jantar, cheguei a Dalatando, que chegara noutros tempos a ser alcunhada de Dala-Matando e, mais tarde foi Vila Salazar, e que naquela altura já era a bonita e risonha cidade de Salazar.       Jantei no hotel e , em seguida, telefonei ao meu amigo Simão Arouca, (O inventor da tal transformação S.T,) para saber novas de Luanda, e para lhe dizer que já estava perto.

Aconselhou-me a dormir no Hotel, mas eu estava ansioso por chegar a casa, de modo que pus gasolina e arranquei.

Só parei no Zenza do Itombe, porque na verdade tive que aceitar que já não podia guiar nem mais um metro.

No Zenza não havia onde dormir. ...Só a tasca.  Como conhecia o dono, pois ficava no caminho que às vezes usava para os Dembos, pedi-lhe para dormir num banco de pau que lá havia, e já me estava a estender, quando chagaram uns rapazes, empoleirados em cima de um camion, que vinham de licença, de Nova-Lisboa, onde estavam a receber instrução militar na Escola de Oficiais Milicianos. Pediram-me boleia, ...e a minha condição foi que tinham que me contar anedotas todo o caminho, para eu não adormecer.

...Afinal, quando cheguei a casa, acabei por tomar um chuveiro, vestir roupa decente e ir dançar para o "Calhambeque"! ...Era muito novo!

Passaram anos, ...em que ainda fui tendo noticias do Gaston, ... e depois a noticia tristíssima de que a Nicole tinha morrido, no hospital de Kinshassa, a meio duma cirurgia à barriga.

Durante muitos anos pensei amargamente que poderia ter tido culpa, e só há pouco tempo o Zé Real, que agora vive aqui perto de Lisboa, me descansou, ao dizer-me que tudo tinha acontecido quase dois anos depois da minha estadia no Zaire.

...Entretanto ...a nossa Angola acabou. Fui parar a Johansburgo, onde trabalhei perto de cinco anos num banco,e a Ingrid, minha muito querida mulher, numa agência de viagens

Quando vinhamos a Portugal de férias, se a viagem era feita na TAP, faziamos escala em Kinshassa ...Não passávamos do aeroporto, mas havia sempre alguém, português ou belga, que nos dava noticias do Gaston.

...Até que, já nem sei quem foi, preguntou-nos: " Vocês não sabem? ...O Gaston morreu.

Suicidou-se! Estava a viver com uma rapariga lingala, muito alta e muito bonita, de boa familia, parece que ainda prima do Desiré Mobúto, que começou a dizer-lhe que estava farta dele ...e que se ia embora. ...E ele respondia: ...Se tu fores, eu dou um tiro na cabeça.

...E um dia ela foi-se mesmo embora. ...E o Gaston deu um tiro na cabeça!"

J.S.C.

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