quinta-feira, 17 de junho de 2010

A OPÇÃO IBÉRICA - I -

 

( IBÉRIA   …OU HISPÂNIA ?        -        Memória - 2001 )

Quando um português desavisado se mete a fazer comparações, em directo, entre Portugal e a Espanha, acaba fatalmente por cair nas mais incorrectas ilações, ...chegando mesmo a atingir aspectos de completo ridículo.

Nós não somos piores ou melhores que os outros povos peninsulares. ...Simplesmente estamos sozinhos! ...Enquanto que os outros tiveram a sensatez (E o mérito) de se unir!

...Portugal deve sim ser comparado com as outras Nações Ibéricas, de dimensão e importância mais ou menos próximas das suas, (Castela, Catalunha, Andaluzia, etc) ...e nunca com a União!

...É notório que se alguém, em qualquer momento, se atreve a dizer que “Portugal é, geografica e demograficamente, uma Nação (Ou um Estado) da Espanha”, …ou que o Português é uma das principais línguas dessa mesma Espanha (Ou da Hispânia)”, logo ali é excomungado! ...E com certeza contestado, mais ou menos neste tom: “Não Senhor! Isto aqui não é Espanha, nem Hispânia, nenhuma! ...Isto aqui é Ibéria!”

...Bom, Ibéria, Hispânia e Espanha são todas a mesma coisa. Ibéria veio do grego, Hispânia é o nome latino, e muito mais moderno. ...Espanha será a alteração para o romanço. ...Mas talvez seja até melhor escolhermos Hispânia (Ou Espanha), porque a Ibéria era mais para a região leste da península, chamada agora Catalunha, embora mais tarde se passasse a chamar Ibéria à Península toda. E o nome provém de Ibero (Rio Ebro), que corre lá daquele lado.

Outra coisa que costuma dizer-se é que Portugal nasceu da Lusitânia.   ...Mas parece que pouco temos a ver com esse povo .    ( Ou povos - Eram onze tribos independentes entre si.)   ...A capital da Lusitânia era Mérida. ...E os lusitanos tinham sido também um povo germânico (Ou indo-europeu ) invasor, como os celtas, mas ainda mais antigo.  …E só chegaram aos Montes-Herminios a fugir do general romano Galba.

Também nunca houve confirmação de serem os Hermínios  a  nossa Serra da Estrela, onde jamais foram encontradas ruínas de castros, e os poucos vestígios existentes parece serem de construções "Tapori".

...A verdade é que Portugal nasceu da Galiza,   …e mais de mil anos depois da pacificação dos Lusitanos, dos quais já ninguém guardava memória.        A Galiza  era  ao tempo a mais evoluída e culta das nações da Espanha  (Depois da Andaluzia, claro, porque essa, sendo de cultura árabe, estava alguns séculos mais avançada). ...O Condado (Portucalense) era o pedaço sul da Galiza, nas margens e foz do rio Douro. ...E Portugal, desde que reconhecido pelo Papado, em 1179, esteja certa ou errada essa opção, nunca deixou de ser independente.

( ...Independência que se manteve até mesmo sob os reinados dos Philipes.  Pois que o II de España se chamou I de Portugal, e assim até ao fim da Dinastia ).

...Mas essa Independência, que todos nós queremos conservar, nada tem a ver com a  “Confederação Ibérica”!   ...Que não nos traria qualquer perda de Nacionalidade ou de Patriotismo, pois que continuaríamos a ser a Nação Portuguesa ...e "Patriotas dos Quatro Costados", ...só que com certeza mais fortes e menos pobres.

...Infelizmente essa União Ibérica continua a não estar sequer à vista!

...Entretanto, se Portugal fizesse parte dos "Estados da Espanha" (ou Hispânia), ...seria o Maior e o Mais Populoso.  Também o que teria os Maiores e Melhores Portos de Mar (Para além de serem naturais) - Com Sines como Porto de Baldeação da Europa –.  Os Melhores Percursos dos Rios (Que poderiam tornar-se realmente Navegáveis), as Melhores Praias (Que passariam a ter verdadeiro “aproveitamento Turístico”, para além da sua "beleza natural"). …O mais fácil Acesso Marítimo ao Resto do Mundo ! ...etc.  etc.  etc.

...Portugal poderia até tornar-se no Mais Importante dos Estados da Espanha!

...Assim, como estamos, ...somos   ...A Outra Andorra da Espanha!   ( Mas mais pobres! )

...Pelo seu lado a Espanha, com Portugal, seria o maior País da União Europeia, com importância semelhante à da França, Reino Unido ou Itália, e população muito aproximada à desses Países.

...Quase todos os Estados Europeus depressa descobriram que só as Uniões lhes dariam Força e Prestigio internacionais:  É a velha divisa  "A União faz a Força".

Assim a primeira terá sido a França, quando os Francos se juntaram aos Gauleses e Povos do Midi. ...Na Grã Bretanha uniram-se os Normandos aos Anglos, Saxões, Bretões e Scots.   ...A Itália, enfraquecida e toda retalhada,  …pelo impulso dos "unificadores", Garibaldi, Cavour, Manzoni, Verdi, transformou-se no portento que hoje é. ...E a Alemanha que, sob o pulso de Bismarck, resultou da ligação da Prússia aos Estados do Oeste e do Sul, e se tornou no País que agora conhecemos!?

...Os próprios Estados Unidos da América do Norte são o que o seu nome diz: UNIDOS.      (...Para o conseguirem sofreram a terrível Guerra da Secessão, ...mas Valeu a Pena! E são hoje em dia a Super-Potência do Mundo porque tiveram a inteligência e a coragem de se UNIR.)

...Porque é que fomos capazes de manter Unidos todos os Estados do Brasil e aqui, pelos séculos fóra, vamos insistindo neste divórcio de "nuestros ermanos", que tanto nos sacrifica?

...Enquanto que eles, ali ao lado, veja-se o Prestigio de que  agora desfrutam!

E, se nos uníssemos, para não ferir susceptibilidades , até poderíamos chamar ao todo Confederação Ibérica. …Ou simplesmente  IBÉRIA.    …E Portugal cá continuava!

Por vezes objecta-se que a Espanha é uma Monarquia, …e Portugal uma República.

…Mas, segundo o Professor A. M. Hespanha, na sua História do Portugal Moderno - Politica e Institucional, citando António de Sousa Macedo, diz-nos que as Monarquias podem, naturalmente, conter repúblicas, nelas integradas como uma parte pública das nações. …De resto estamos convencidos de que o Português, por  índole  e discernimento, continua a ser monárquico.                          …Pois que vincadamente o era a quando da implantação da república. …E só por um despropositado erro essa implantação aconteceu.   …No Porto espalhou-se que a revolução tinha ganho em Lisboa, …e em Lisboa parece terem conseguido o contrário.    No resto do País proclamou-se a república   …pelo telégrafo.  

…A convicção dos republicanos era tão pouca, que o Chefe da Revolução, Almirante Reis, suicidou-se na madrugada de 5 de Outubro,  convencido de que a República estava derrotada..

Portugal em oito séculos de Monarquia CRESCEU, quase até ao infinito.

Com um único século de República DIMINUIU, até quase desaparecer.

De resto, não é a Espanha uma Democracia ?

E não é Democracia um sinónimo de República ?

Porque é que o 25 de Abril concedeu aos portugueses a escolha da sua forma de Governo, …e não lhes facultou também a escolha da sua forma de Estado ?                                                                                   

Bastaria uma pequeníssima alteração à Constituição:  Em vez de “Eleição para Presidente da República”,  passaria a dizer-se “Eleição para Chefe do Estado”.  …E assim, além dos candidatos republicanos,  poderiam  também concorrer candidatos monárquicos;   Bragança,  Bourbon,  ou outros.                                 

E estaria reposta a  moralidade. 

Entretanto continuamos com o maior receio de que a “maioria nacional” goste disto é tal como está:   Pequeninos, pobrezinhos, atrasadinhos,  mas     …orgulhosamente SOS.

 

Nov. 2001

J. Sá-Carneiro (*)

 

(*) José António de Sá Carneiro

Despachante da Alfândega de Luanda de 1952 a 1975

Despachante  Ofic. da Alf. de Lisboa desde 1980

Diplomado em Marketing Management pelo SAMA de Joanesburgo

Licenciado em História pela Universidade Aberta de Lisboa

Nasceu em Lisboa em 1927

terça-feira, 15 de junho de 2010

ADEUS EUROPA. …BEM-VINDA IBÉRIA !

 

É  COM A  MAIOR  CONSTERNAÇÃO  QUE   NOS  SENTIMOS  OBRIGADOS   A  RECONHECER  QUE,  APÓS  DOIS MIL ANOS DE HISTÓRIA,  MAIS UMA VEZ,  A  TÃO  ALMEJADA  CONSTRUÇÃO  DA  EUROPA…              

…JÁ VOLTOU,  PROVAVELMENTE,   A  FALHAR !

          …RESTA-NOS  O  REGRESSO  À  “IBÉRIA” !

Desde já, encarecidamente, vos pedimos que não nos tornem a falar em “soluções miraculosas” para um Portugal isolado, sem  um mínimo de recursos naturais, com uma população que não consegue de modo algum sair do seu “circulo de fatalidade”, o qual não lhe consente  instruir-se porque é demasiado  pobre.         …E  que, por outro lado,  continua a ser cada vez mais pobre porque não tem  instrução.    

… A verdade é que, mesmo com gente  de melhor qualidade, e com  mais imaginação para  tirar  algum proveito das miseráveis condições que nos rodeiam, Portugal, sem  colónias, e isolado  do resto da Espanha,  nunca poderá ser viável.                                 

Por favor:   Não brinquem mais connosco !

                                           _____________

Vão uns dez anos, iniciámos uma série de pequenos artigos, sem “valia politica” de maior,  nem qualidade literária, em que  se tentava demonstrar que Portugal, uma vez que, após a revolução de 1383 e  a batalha de Aljubarrota,  havia cortado laços com Castela e todo o resto da Espanha,  …só tinha conseguido sobreviver, atravessando os mares,  e instalando-se em posições “do outro  lado”.         …Mas que agora    …já não havia    …“o outro lado”.

Esses artigos destinavam-se a ser publicados no jornal “O Dia”,   onde  escreviamos  às vezes,  e que  entretanto foi extinto,  pelo que nunca vieram à  luz.   Porém, os raros  amigos que os leram, por pouco não nos matavam.   …E fomos forçados a concluir que, no fundo,  gostavam era disto tal como estava:     Um Portugal      Pequenino, bonitinho,  pobrezinho, mas  “separadinho”.                 

Depois começámos a acreditar que a União Europeia  iria resolver todos os nossos problemas,     …e não se pensou mais nos tais artigos.

                                       _____________

…Longe de nós alvitrar “quem terá feito falhar a Europa”!…

Mas, passado este intervalo de dez anos, em  que a maioria das pessoas  já se apercebeu da realidade que nos cerca  e,  perante o falhanço, já quase definitivo, de todos os nossos geniais “Planos Europeus”,  parece que só nos resta  em consciência,   procurar  esses textos dispersos, talvez perdidos e,  agora com a facilidade da Internet,  passar mesmo e decididamente,   a  publicá-los.

O  Primeiro desses artigos escrevêmo-lo a 19 de Março de 2001, e é, com ligeiras alterações, este  que se anexa.                                       

Chamou-se “Ibéria  …ou  Hispânia?  –  Um  Ensaio  Iberista”.   

Passa agora a chamar-se:  “A Opção Ibérica”.                                  

Facultámos cópias dele  (Bem como, mais tarde,  dos outros 5 ou 6 que o  seguiram)  a dois amigos, que os terão estudado e adaptado nessa altura.     Foi já publicado,  há uns meses,  neste mesmo Blogue.

Para servir de inicio à pequena série, tornamos agora a emiti-lo, com ligeiras alterações,  sob o título de  “A  Opção  Ibérica  -  I  -“ 

Claro que tais artigos, este e os outros, não valem grande coisa,    …mas é o nosso contributo.        …E talvez ajudem!                

Afinal por algum lado teremos que SAIR! 

J. Sá-Carneiro

quarta-feira, 9 de junho de 2010

ANGOLA CRIOULA

                                                                                             ( MEMÓRIA)

ANGOLA CRIOULA - I

- Terá sido em 77 ou 78. Meia dúzia de refugiados portugueses, de Angola e Moçambique, à conversa num café de Joanesburgo. O José Ramalho, ex-redactor, creio que do “Noticias” de Lourenço Marques, e que estava na altura a trabalhar numa revista sul-africana chamada “To the Point”, preguntava-me porque é que o Savimbi chamava à Jamba “Capital da República Negra de Angola”. Claro que eu não sabia, ...mas fui alvitrando que talvez fosse por Angola não ser ainda...“Negra”, ...embora independente. ...Perguntou-me o que seria então Angola. Respondi-lhe que, a meu ver, Angola estava a caminho de voltar a ser crioula. “Crioula” como na verdade já tinha sido, no tempo colonial, e talvez como definitivamente acabasse por voltar a ser.

- ...Mas afinal o que era isso de “crioula”?

- Tenho um velho dicionário, intitulado “Thesouro da Lingua Portugueza”, da autoria do Dr.Frei Domingos Vieira, editado no Rio de Janeiro em 1873, que diz que “crioulo é o homem ou mulher brancos, originários das colónias”. Também diz que “negro crioulo é o nascido na colónia, em opposição ao proveniente do tráfico”.

O Larousse diz que “crioulo” ( creole ) é “Pessoa de raça branca nascida nas colónias”.

A Enciclopédia Britânica define “creole” como o termo que e usava, do Sec. XVI ao Sec. XVIII, para indicar pessoas brancas, nascidas na América Espanhola, filhas de pais espanhois.

O dicionário norte-americano Funk & Wagnalls diz que crioulo é um descendente de colonizador francês ou espanhol, da Luisiana ou dos Estados do Golfo e que mantém os seus especiais dialecto e “cultura”. Diz ainda que “Creole State” é o nick-name da Luisiana.

Sabemos que pelo correr do Sec.XIX se passou a chamar tambem crioulo ao africano negro que falava e escrevia o português ( Ou francês ou castelhano ) e, naturalmente, aos mestiços resultantes das duas raças. Passava assim o termo “crioulo” a definir e caracterizar uma determinada “cultura”, em vez de qualquer conceito de “raça”.

- Mas em 1942 quando, com 15 anos, cheguei a Luanda, teve esse vocábulo para mim muito mais impacto e significado que todas estas definições meio abstractas. “Crioula” era a população angolana ( branca, mestiça ou preta ) de expressão portuguesa, que constituia a maior parte da comunidade civilizada das cidades e vilas da colónia.(Brancos nascidos lá, muitas vezes de várias gerações, mas tambem outros que para lá idos em crianças, tinham adquirido o sotaque e os modos e mentalidade dessa extremamente gentil comunidade)...E ser crioulo era um modo de estar na vida. Era fazer parte duma “Cultura” muito especial, detentora duma sensibilidade e dum encanto, que só podia ter florescido dentro da Cintura dos Trópicos. Os crioulos de Angola seriam ao tempo um milhão. Na sua maioria de raça negra, cláro. A restante população da colónia estava ainda, a vários estágios, no caminho desse processo de assimilação. ...Mas eram crioulas muitas das familias, a que felizmente tive acesso       ( brancas, mestiças ou pretas ) mais consideradas de Luanda           ...Nunca vi ninguém receber melhor em sua casa!      ...E, quando se abeirava o fim do ano, disputavam-se os seus convites para as festas de Réveillon. ...Meu Pai, chegado um ano antes, explicava-me todo aquele esquema social. Dizia-me que Cabo Verde não era a única colónia portuguesa crioula. Que também Angola o era, embora aí se falasse um português muito mais próximo do europeu do que o dialecto caboverdiano.

Dizia-me ainda que essa população crioula, se um dia Angola viesse a ser um País independente, seria a sua grande vantagem face a qualquer outro estado africano. ..Levou-me ao que chamou a Capital Crioula de Angola - Benguela - , onde havia muitos senhores brancos casados com senhoras pretas, mas o contrario tambem ali com frequência acontecia.

- Voltei a Benguela pelo final de 1991 e passei o Réveillon no Sporting.

...O cenário social era exactamente o mesmo que eu conhecera cincoenta anos antes.

 

ANGOLA CRIOULA - II

É evidente que havia outras comunidades civilizadas em Angola naquele tempo. A dos funcionários públicos em comissão de serviço, por exemplo: o caso de meu Pai. Mas a aproximação era extremamente fácil, e assim me foi possível beneficiar das duas culturas, o que ainda hoje considero das melhores benesses que a vida me deu.

...Mas essa maravilhosa Cultura Afro-Portuguesa, que tinha feito o Brasil e que tão característica e vigorosamente se fazia sentir quando conheci Angola, estava condenada, sob as vagas sucessivas de neo-colonos dos anos 50 e a ocupação militar dos 60 e 70, a quase se extinguir. Pouco a pouco foi-se diluindo. Os seus mais caracteristicos representantes foram desaparecendo, e esse tão simpático “modus vivendi tropical” foi-se quase por com-pleto submergindo. ...Como lingua, não chegara sequer a ser um dialecto, ...mas era um português dum muito peculiar sotaque, doce e cantante. ...Era “música”! ...E já quase que não se ouvia falá-lo. ...Como Cultura? ...Não me será fácil expressar essa cultura crioula, muito mais de sentir do que de compreender, ...que, para alem da nossa de portugueses, nos dava acesso a outras regiões do entendimento, ...que nos transportava a uma espécie de “euforia lúcida”, ...que nos levava a um melhor relacionamento com tudo e com todos e a achar que, à nossa volta , todas as coisas e todas as situações eram fáceis e perfeitamente naturais.

...Raças? ...Acho que ninguém falava de raças naquele tempo. ...Ou se falava era sem acinte nem maldade. Toda a gente se ajudava. ...Se o branco era “paternal”, ...juro-vos que isso não iria de modo algum ofender o preto, antes pelo contrário.  ...Ninguém era estúpido!

E a posição inversa também se verificava: Eu, por exemplo, posso dizer que fui tratado com natural paternalismo por um Senhor preto, funcionário das alfandegas, naquele tempo patrão das lanchas, que se deslocavam aos navios nos dias de “S.Vapor”, e que se chamava Antonio Pitra. Foi ele que me ensinou a pilotar barcos e guiar automóveis, bem como muitas e muitas outras coisas, que sempre me serviram durante os perto de 40 anos que vivi em África.

Quando em 1991 voltei a Luanda, o Pitra convidou-me para almoçar em sua casa, no Bairro do Cruzeiro. Era uma daquelas casas grandes, com varanda colonial, que eu tinha conhecido, no tempo da colónia, como residências dos altos funcionários.

Em redor da enorme mesa estavam 7 ou 8 dos seus filhos e filhas, quase todos formados, em medicina, em direito, etc.  Ele à cabeceira e à sua frente a Dona da casa, que eu também conhecia desde garoto. Fiquei ao lado do Pitra e durante todo o almoço (muamba) ele não me largou o pulso, obrigando-me quase que a comer só com uma mão, ...e era bem visível a sua comoção enquanto conversávamos. ...Infelizmente estava com oitenta e muitos, e morreu no ano seguinte.

Se aceitamos que uma “cultura” é na verdade como que um “permis de conduire” dentro duma “comunidade”, por dela termos alcançado suficiente conhecimento, então a Cultura Crioula de Angola era o Permis que tanto servia para nos guiarmos ( Pretos, Mestiços ou Brancos ) pelos “Arruamentos de Civilização”, que para ali tinham sido transplantados , como pelas “Bárbaras Sendas do Mato”, que tanta felicidade e tão generosa liberdade transmitiam, e das quais sentimos hoje a mais dolorosa saudade.

...E essa “cultura” perdurou! E há assim que reconhecer que a enorme supremacia ( moral e intelectual ) de Angola sobre a maioria dos outros novos países africanos, provem exactamente dessa sua formação cultural Afro-Lusa, ...tão forte, ...tão intima, e tão única em todo aquele Continente.

...E eram estes “angolanos de cultura crioula”, na variedade exuberante das duas raças e suas combinações,  inesperadamente ressurgidos, de todos os lados, no momento fulcral da independência - que eu dizia ao jornalista José Ramalho terem sido os verdadeiros herdeiros dos portugueses. ...Dessa herança que se chama Angola!

...Claro que Angola Crioula é muito mais que tudo isto. ...Só tentei dar uma ideia!.

 

ANGOLA CRIOULA - III

Sabemos contudo quão difícil tem sido a consolidação desta ”civilização crioula” em Angola.

...Dificuldade que irá persistir até ao momento em que o País inteiro possa sentir que é afinal crioulo também. ...E que seja capaz de enfrentar, e vencer, as poderosas correntes internacionais que gostariam de ver instalar-se em tão rico e portentoso território outras “culturas” mais fáceis de “manipular” ...e “espoliar”!

( Também muitas vezes nos queixamos de que os crioulos não trataram com a esperada fraternidade muitos portugueses, ...”que lá podiam ter ficado”! ...Mas não nos esqueça-mos de que naquele momento não eram eles que tinham “a palavra”....E de que, de certo modo e em várias fases, também a eles Portugal abandonou. ...Não esqueçamos que muitos e muitos foram, tal como nós, obrigados a exilar-se.    ...Que outros terão sido tragicamente imolados pela tremenda confusão que se seguiu à independência...E muitos continuam ainda a sacrificar-se, todos os dias, tantas vezes até à morte, ...afinal para que Angola continue a ter essa Cultura Crioula-Portuguesa, ...que sempre sentiram ser a sua. )

Fala-se, com declarado entusiasmo, dos PALOP’s. ...E com certeza que tentar promover uma união de povos pela sua afinidade fonológica será sempre iniciativa de louvar, bem como todo o movimento que daí se gerou.    ...Mas língua, só por si, pouco significaria sem a forte envolvente, e o apoio, duma “cultura”, da qual ela seja a forma natural de expressão. ...Acabaria fatalmente degenerando numa espécie de oco brouhaha,   ...como tantas vezes acontece.

...Em Moçambique, por exemplo, também ficou a língua, mas não ficou a “cultura”. ...E isso porque na realidade nunca lá existiu aquilo a que podemos chamar uma comunidade crioula. E até que uma língua, desprovida da sua correspondente entourage cultural, está condenada a rapidamente desaparecer.

...Todos sabemos perfeitamente que aquilo que poderíamos classificar como “real e genuína cultura portuguesa”, a nossa cultura europeia, ...essa não ficou em parte nenhuma! ...Não em Macau, ...nem na Índia, ...nem no próprio Brasil ( Afinal também basicamente formado por estados crioulos, equivalentes à Luisiana ).

O que, por toda a parte, deixámos foram culturas mistas, de base portuguesa, é verdade, mas muito mais adaptadas aos diferentes cantos do Mundo por onde as soubemos espalhar, e onde, nalguns casos, irão perdurar ainda por séculos.

(...Talvez que Cabo-Verde, apesar de todas as carências, possa ser considerado, em seus aspectos social e cultural, como um perfeito exemplo do sucesso “luso-crioulo” em África )

...Penso que, tanto como a Lingua, é essa Cultura que sempre ligará Angola a Portugal.

Não estou à altura de aqui referir aspectos artisticos ( Pintura, escultura, música, etc.) ou literarios, por exemplo, em que sabemos ser a cultura angolana original, exótica e profusa.

...A abordagem de componentes religiosas desta cultura, que se coloca para alem das minhas capacidades, essa deixo-a para quem quiser prosseguir com tão aliciante proposta.

...Resta-me agora tomar a liberdade de lançar, daqui, das colunas desta Revista, o meu repto e convite àqueles que sabem e podem explicar esta “Angola Crioula” muito melhor do que eu, para que o façam! ...Porque me parece extremamente importante fazê-lo! Creio que, de certo modo, isso viria ajudar um pouco a corrigir certos conceitos e a reequacionar determinados problemas, ...sempre com vista ao difícil objectivo de aclarar no possível as desastrosas dúvidas em que aquele sacrificado País continua a debater-se.

E esse vosso contributo, que visaria, como primeira etapa, reconhecer e definir uma “Cultura Angolana”, poderia afinal vir a ter relevante importância para o futuro de Angola e o reforço dos seus laços com Portugal, e para o arranque definitivo dum verdadeiro Projecto Conjunto, que só poderia trazer vantagens e felicidade aos nossos dois Países.

José António de Sá Carneiro                          Out. 2000