sábado, 17 de abril de 2010

OS ANOS LOUCOS DE LUANDA - II

“OS  DRAGÕES”                                            ( CONTINUAÇÃO )       

…E a Coluna estacou para uma rápida reunião:  Comandantes, sargentos e cabos, cinco ou seis condutores civis.   …E,  logo em seguida, e da forma mais abrupta, o comandante desata aos berros,   manda  pôr  toda  a gente,  camionistas incluídos,  em respeitoso sentido, ao longo da berma da picada, e começa a  pregar-lhes uma das mais furiosas  descomposturas  que  eu  até  ali tinha ouvido.   ( Claro que nunca  percebi  porquê).                   Ao mesmo tempo,  e a passos largos,  ia percorrendo a fileira, duma ponta até à outra, sempre zurzindo a poeira do chão, a chicotadas do cavalo marinho, de que nunca se separava.

A seguir subiu para o Unimog e,  também em rigoroso sentido,  berrou  a  pergunta:    “Quem é o alferes mais charmoso do Exército Português ?                              E os os soldados responderam em coro:      “É o  menino  João Moreira”.                                                                         E eu, que tinha ficado sentado no banco do Unimog, devia  com certeza estar a olhar para tudo aquilo, com o ar mais  espantado do mundo.                                                          Por fim gritou a ordem:   “Siga a coluna !”

Meia hora depois, num lugar a que chamavam a Baixa da Bananeira, estávamos todos enterrados.                             …E, logo a seguir, a noite caiu.

Ainda houve uma ou duas tentativas de rebocar camions com os Unimogs, mas era preciso abrir passagens ao lado da picada, e a noite estava breu.       Assim resolveram deixar para de manhã.

Foram estabelecidos postos de sentinela,  em  três  ou quatro pontos, …mas eu, que estava a dormir dentro dum camion,  acordei a meio da noite e fui, por curiosidade, dar uma volta ao acampamento:                                               Não havia vivalma acordada!                                                 E como,  durante toda a noite,  nada de nada aconteceu, veio reforçar-se a minha convicção de que,  na verdade,  a guerra de Angola já tinha acabado.                                       …Ou, pelo menos, que alguém a tinha mandado “parar”.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

OS ANOS LOUCOS DE LUANDA II

OS  DRAGÕES

J. Sá-Carneiro                                                   Cascais, 19. 03. 2009

                                                                                          (Memória)

Desta vez é só para contar como fui parar ao Zala, “incorporado”  na escolta  militar,   mensalmente  prestada pelos Dragões,  às colunas de abastecimento à  Belavista e a  S.ta Eulália.

A Belavista era o maior aquartelamento do Norte, que servia as províncias do Uige e do Zaire (Congo Português) junto à fronteira da República do Zaire (Antigo Congo Belga).  S.ta Eulália era a Base Aérea do Norte de Angola.   O Zala era um posto de combate, no meio do mato, “terra de ninguém”, pois que, servindo de escala,  normalmente era abandonado após a passagem da coluna, e assim ficava até à próxima.

...Mas francamente não sei muito bem por onde começar.    …Vamos a ver:

Quando tinha que despachar aviões,  em geral charters da África do Sul,  na alfândega do Aeroporto, tarde da noite, ou às vezes já de madrugada, era sempre eu próprio que me encarregava desse serviço, nunca o entregando aos ajudantes.  E naturalmente que haveria nisso uma certa intenção,   ...mas sem pecado de maior. Até confesso:   É que então acontecia que, antes ou depois do avião, eu acabava, quase que fatalmente, por dar um salto aos cabarés,  quanto mais não fosse  para espreitar as “novidades”.       E foi isso mesmo que aconteceu naquela noite.

Mas antes de entrar em pormenores dêem-me só uns minutos para tentar explicar o que eram os Dragões de Angola. (Tropa de cavalaria, motorizada:  Uma companhia no Sul, e um esquadrão em Luanda): Quando estoirou o terrorismo, em Fevereiro de 1961, com o ataque à ‘brigada móvel´da estrada de Catéte  e, um mês depois, a mortandade no norte de Angola de mais de 2.000 europeus e 5 ou 6.000 africanos, que ficaram ao seu lado, os Dragões constituíam praticamente a única unidade militar europeia que existia na Capital ...e eram só 85, ...incluindo o seu comandante, o capitão de cavalaria José Maria Mendonça Júnior.       O resto da unidade era formado por cerca de 200 africanos, que o capitão Mendonça sempre teimou em não levar a combate.  Conheci (E ainda conheço) muito bem o Zé Maria e, numa outra ocasião, se ele concordar, tentarei contar algumas das suas histórias.       Conheci também, com certa aproximação, alguns seus dragões, dentro os quais ainda destaco o Jean-Jean Penaguião.                     …Mas eram todos bons. ...E foram eles que, na verdade, nos salvaram, pois durante uns bons três meses não chegou qualquer socorro a Luanda, com excepção duma companhia de páraquedistas, que logo foi expedida para o mato.

Mais militares europeus: Cerca de três dúzias de policias, que ao todo dispunham de 12 pistolas, estando uma delas definitivamente encravada, e que eram rendidas, quando rendidos eram os guardas de giro. Dez ou doze para toda a cidade. Podia-se ainda contar uma vintena de guarda-fiscais, também mais ou menos armados, de Parabelum’s da 1ª Guerra os do porto de mar, e de duas FBP´s de 9mm, os do aeroporto.

Luanda teria naquele tempo cerca de 50.000 europeus. Mas armas só de caça, e poucas. E os Muceques, com perto de um milhão de africanos, ferviam ali à nossa volta.

...Outra vez na História, arremedando o Churchil, nunca tanto se deveu a tão poucos.

Mas o relato que agora vos transmito diz respeito a factos ocorridos meia dúzia de anos mais tarde e o Capitão Mendonça já nem sequer estava em Angola, pois penso que teria sido promovido e transferido para Timor, como ajudante do Governador Geral.

Também não me recordo de quem era o comandante dos Dragões naquela altura.

Porém voltando aos cabarés;   ...Figuras crónicas da noite:   O Salvador, despachante-oficial meu colega, o Sousa Batoteiro, com os dedos carregados de aneis, o Gentil do dente de oiro, ...esses nunca falhavam. ...Mas também o Cristiano Lane e o Luiz Gama, o Teófilo Esquível e o Tito Larcher, enquanto lá estiveram ...e uns tantos outros.

...E depois havia os oficiais e sargentos milicianos, “da guerra”. Isto passa-se em 1967 ou 68. E eu, como saia bastante à noite, conhecia-os a todos.

A guerra durou 14 anos, e foram muitas as incorporações, algumas de Angola, mas a maioria metropolitanas, claro, de generosos rapazes que, sempre cheios de entusiasmo e alegria, se sacrificaram, muitos deles até à morte, para defender uma terra, que na verdade nos sustentava a todos, ...lá e cá, ...e que depois “os outros” deitaram fóra.

( Não estou a falar da independência.   ...A independência tinha que ser!    Estou a falar do abandono,   ...que evidentemente não tinha que ser.    Nem podia ser!   …E que foi! …Por engano …e total inépcia.      …Para não se dizer pior!)

Luanda daquele tempo era a cidade africana com mais vida nocturna, a sul do Equador. Havia uma profusão de boites e bares por todo o lado.   E não faltavam cabarés.   Quando entrei no “Embaixador”  dei logo de caras com o João Moreira, alferes dragão, de Moçamedes, e o Nuno Alegre “Rato”, miliciano da Metrópole, do Porto. Chamaram-me para a mesa deles, apresentaram  as  pequenas,  e  foi assim que começou.

A noite foi igual às outras:  Copos, saúdes, graças   ...alegria.           …O espectáculo até nem era mau.    … Havia um número com uma baiana engraçadíssima, ...e gordíssima, intima de todos nós, e depois o maitre anunciava “Senhoras e Senhores agora apresentam-se as irmãs “Sisters”, da África do Sul”. ...E depois dançava-se, ...e depois mais copos ...e fichas.

Quando saimos de lá, às quatro da manhã, é que eles me disseram que:   “Agora vamos a casa fardarmo-nos num instante, para nos juntarmos à coluna para o Zala, que sai às cinco horas”.   Duas Panhards e quatro Unimogs dos Dragões iam escoltar cinquenta camions civis.  Era o abastecimento, quinzenal, do Zala e da Bela Vista, cuja escolta daquela vez cabia aos Dragões.                            Comandava a coluna o “Rato”,  e a escolta o João Moreira.             Há muito tempo que eu ouvia falar do Zala, onde as colunas eram sempre atacadas, ou pelo menos flageladas, e estava com imensa e mórbida vontade de ir lá espreitar,  mas ao mesmo tempo fazia-me um certo arrepio.   ...Por outro lado estava triste e sozinho em Luanda.     A Ingrid tinha-se zangado comigo e ido para casa da Mãe, em Lisboa.   E a ir ao Zala era com aqueles.     …Por isso perguntei:  Posso ir com vocês?”       -        “Só se arranjares uma farda.    ... E por amor de Deus não morras, senão estamos feitos”.

O meu primo Zé Manel (o Guedes Vaz), tambem alferes miliciano, estava destacado no Saurimo, e tinha deixado lá em casa uma muda de camuflado. Era grande demais para mim, pois que ele tem um metro e noventa, mas de mangas arregaçadas, até nem me ficava mal. Armas não me faltavam, pois tinha as da fazenda. (Felizmente nunca tive que usar nenhuma). Escolhi uma pistola FN, de 9 mm, com carregador para 12 ou 14 cartuchos, que me estava cedida pelos Voluntários (OPVDCA),   ...e ainda cheguei à coluna antes deles. Os soldados ficaram a olhar para mim com um ar muito admirado, mas eles chegaram logo a seguir e fizeram a apresentação ...como “correspondente de guerra”.     Houve um toque de clarim (intempestivo àquela hora, ali em plena cidade) e a coluna arrancou. Eu, que tinha subido para um Unimog, deitei-me no chão, ao comprido, pois não havia lugar no banco, o que até me convinha porque estava a morrer de sono.    Mas como os Unimogs não tinham taipais, para que os soldados saltassem depressa para combate, se pegasse a dormir acabaria por rebolar para a estrada. Porém os Dragões resolveram logo o problema.   O banco era corrido e os homens iam sentados dos dois lados, costas com costas.   Assim deitei-me debaixo do banco, por trás das pernas dos soldados, e já não havia o risco de rolar para fóra.   Devo ter adormecido imediatamente.

Fui acordado pelas tremendas sacudidelas do Unimog. Tinhamos deixado o asfalto e já singravamos em plena picada. Abri um olho,   ...estava o dia também a espreitar   ...e só via botas.

Quando consegui acordar por completo, e focar a realidade que me cercava, acho que apanhei o maior dos sustos. E até talvez tenha pensado que tinha sido raptado por terroristas. ...É que a única farda à vista, em toda a extensão da coluna ...era a minha. Todo o resto era um carnaval:   Tangas e calções de banho. Boinas, bonéts  e barretes de toda a espécie, turbantes   ...e até penas na cabeça.    O comandante da escolta envergava uma elegante jaleca, creio que de bombazine preta. Para completar, uma boina de veludo, com pon-pon, roubada a uma amiga nossa. O “Rato” estava fora de vista e já não me lembro como estava embrulhado. Na Panhard da frente, sentado na torreta do canhão, que era anti-carro e ali só servia para assustar, ia o vigia-corneteiro.  E cada vez que se ouviam detonações, e ele apontava para as colinas, o João Moreira, sentado ao meu lado no Unimog, berrava-lhe: “Toca a toiros, ...Toca a toiros!” ...E o clarim vibrava.

De inicio tudo aquilo me pareceu completa palhaçada. ...Mas mais tarde vim a perceber o seu estranho efeito psicológico: Do nosso lado, mantinha o moral ao alto e até mesmo a alegria. Do lado do inimigo, parece que o deixava completamente “baralhado”,  e o resultado é que nunca a escolta dos Dragões teve baixas, e foram muito raros quaisquer ferimentos. ...Enquanto que sempre que a escolta era feita por unidades expedicionárias,   da Metrópole, havia feridos e, não poucas as vezes, baixas mortais. ...Além de enorme desperdício de munições.   O facto dos Dragões serem tropa angolana, embora só um único fosse de raça negra, por acaso um dos alferes, talvez também ajudasse ao seu sucesso.      Os condutores eram continentais, transmontanos.    …Mais tarde conheci-lhes o mérito.

A dada altura começamos a ouvir rajadas de pistola-metralhadora, mas longe. Ninguém ligou nenhuma, e a coluna prosseguiu.           O tempo começou a escurecer à nossa frente,  e pouco depois estava a chover. …E assim se foi passando o dia todo. Mais tiro, menos tiro, e cada vez mais chuva.   Por volta das cinco da tarde    já os tiros se ouviam muito próximos, e as detonações eram mais fortes, já de espingardas. O mato, que chegava até à berma da picada, era tão fechado que nada se via através dele. Também se ouviam vozes, já muito próximas. A coluna seguia a paço de tartaruga, com os carros a enterrarem-se na lama.

…E foi então que o comandante da escolta deu voz  de paragem.

                                                                                                    (CONTINUA)

OS ANOS