sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Perfil

PERFIL

José António Guedes Vaz de Sá-Carneiro, nasceu em Lisboa em 1927. Foi para Angola, com seus pais, em 1942 e voltou a Portugal, em 48, para aqui fazer o serviço militar. Regressado em 50, foi despachante oficial da Alfândega de Luanda de 52 a 75.

Casou com Ingrid Ullerich, filha de agricultores alemães, em 57, passando a gerir a fazenda de café de sua mulher, Kissokolo, que ela própria administrava,  em simultâneo com as alfândegas.

Face aos dramáticos acontecimento de 75, que os levaram a tudo abandonar em Angola, tentaram uma experiência brasileira, que não resultou. Tendo regressado a Joanesburgo, que tinha sido a sua primeira escala, aí conseguiram obter residência e colocação. Ele num banco, sua mulher numa agência de viagens. Situação que mantiveram até Dez.79.  Diplomou-se no  SAMA - Marketing Management, para planear a implantação de filiais bancárias.

Em Janeiro de 1980 o Estado Português reintegrou os despachantes oficiais ultramarinos no Quadro Nacional.

A  firma "J. Sá-Carneiro - Soc. de Despachos, Lda" manteve por 20 anos, o escritório da R. da Prata, até que a abertura das fronteiras europeias levou ao seu fecho, em Dezembro de 1999.

…Para ter uma ocupação, matriculou-se na Universidade Aberta, tendo conseguido licenciar-se em História em 2005.  Entretanto, obtida a nacionalidade angolana, foi-lhes devolvida a fazenda de café, cujas instalações e agricultura, embora quase totalmente destruidas, eles ainda  pretendiam recuperar.    Mas o inesperado e doloroso falecimento de sua mulher veio pôr fim a todas essas esperanças.

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Algumas palavras sobre o  nickname “Waterproof”:    

Os “IRMÃOS DA COSTA” são uma associação náutica-desportiva,  criada no Chile há cerca de 60 anos,  hoje espalhada por mais de 50 países,  e que não cessa de crescer.   

Surgida em Angola na década de 1960,  foi trazida para Portugal, já nos anos 80, pelos ”Nautas Retornados”,  sobretudo graças ao esforço do nosso saudoso Irmão Humberto Baptista da Costa, que em sua construtiva, mas também pitoresca e desportiva vida, foi de certo o mais carismático de todos nós.                                                

Penso que a Mesa de Lisboa terá nesta altura cerca de cinquenta  Irmãos, e  suas “Cativas”. 

As raizes históricas da “Irmandade” perdem-se nos “Buccaneers” da Ilha da “Tortuga”, no Caribe, que começaram por caçar e secar carne para a vender aos corsários ingleses e  a  flibusteiros das mais diversas  origens, e que no Sec. XVII acabaram por se tornar na mais rica e temida “Irmandade Pirata” do Mar das Antilhas.

O  facto, secreto durante anos,  de uma VAGA  LOUCA e gigante ter arrancado o iniciador deste blogue do cock-pit do  pequeno veleiro,  pelas duas da madrugada dum Setembro  Negro,  frio  e chuvoso,     …e  ele ter sido, milagrosamente,  pescado  meia hora mais tarde, resultou, logo que conhecido,  em que a Irmandade o crismasse de  “Waterproof”.

( VIAGEM  DO  “EASY” -  VER  EM  JANEIRO  2010  -  Letra  12 )

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

"VIAGEM DE RETORNO DO “EASY”

( Porque me crismaram de Waterproof )

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...Voltar para o Norte, para casa, foi sempre mais complicado! ...O barco era um Rush, acabado de estrear, à volta de 30 pés, Bénéteau ou Jeanneau, não me recordo.

...Para baixo tinha sido fácil ..Vento de popa ...e bom tempo! ...Nem sei quem timonara. ...Depois, durante toda a semana, tinham andado de porto em porto (e de petisco em petisco), correndo a costa algarvia, incluindo Vila Moura, a unica marina em Portugal naquele tempo. Julgo que quase sempre a motor, porque nenhum deles tinha grande treino de vela.

Quem eram? ...O dono do barco era o Eng. José Canto Moniz, que tinha sido Ministro dos Transportes e Comunicações, no tempo do Estado Novo, e tambem Director da Ponte do Tejo, agora “25 de Abril”, durante a sua construção. Teria nesta altura sessenta e poucos anos, muito bem conservados. Nunca percebi porque tinha comprado aquele barco, pois não era velejador. Os outros dois eram seus familiares: Um genro, estreante em vela, o João Paulo Antunes Mesquita, advogado, de extrema e espirituosa simpatia, e um sobrinho-neto, o célebre “Batata” Cerqueira Gomes, conhecidíssimo no Porto, bom praticante de windsurf, e óptimo companheiro, mas que nada sabia de veleiros.

Assim, quando foi altura de regressar a Lisboa, pediram uma ajuda ao sobrinho do engenheiro, o cirurgião, hoje em dia de renome, Carlos Canto Moniz, (que ainda continua a ser “Irmão da Costa”, como nós), praticante de vela toda a vida, desde os Lusitos aos Vougas e Snipes, e depois, já nos Cruzeiros, em viagens a Vigo e a Lisboa,

pois fazia base em Leixões, e mais tarde até Ibiza e regresso, “um feito” naquela época!

...Verdadeiro estofo de mareante!

O Carlos telefonou-me a perguntar se lhe queria fazer companhia.

Isto passa-se em Setembro de 1983. Eu tinha tirado a carta de Patrão de Alto-Mar um ano antes, ao tempo à base de sextante, cronómetro e almanaque ( Ainda não havia GPS, nem sequer Satnave), e fazia os cálculos com certa facilidade. Mas, embora muito habituado, desde garoto, ao mar e a lanchas, nas águas de Luanda, só tinha a prática de vela de um pequeno Monotipo, o “Ferrabrás”, que tinha tido em Angola, dos 15 aos 19 anos, até vir fazer a tropa em Portugal. ...E de 3 ou 4 viagens de “pendura”, a V. Moura.

Eu e o Carlos chegámos ao Algarve, de automóvel, ao cair da noite. O Rush estava no porto de pesca de Lagos. Nós hospedámo-nos em casa do tio, na Praia da Luz. Havia muita gente em casa, primos e primas, e o ambiente estava simpático e alegre.

Jantámos bem, e depois bebemos uns copos, acabando por nos deitar sobre o tarde.

No dia seguinte, um sábado, não conseguimos arrancar para Lagos antes das dez da manhã. Resolvemos lavar o barco. Depois abastecer: Gasóleo, óleo, comes e bebes.

...E acabámos por partir ao meio dia. Eramos cinco a bordo.Todos muito bem dispostos!

O Carlos, como não podia deixar de ser, era o skipper. Umas horas mais tarde, já quase em frente de Sagres, começou a levantar-se um Norte esquisito, com rajadas duras, que eu julgava ser raro na costa sul, naquela quadra. ...Estavamos na ultima semana de Setembro.

...Quando dobrámos o cabo de São Vicente o vento tornou-se tão forte que, mesmo com vela e motor, não conseguiamos progredir. Falou-se em voltar para trás, ...o que se teria feito desde logo se o Carlos não tivesse cirurgias marcadas no Hospital de Sta Marta para a 2ª feira seguinte. Começámos a tentar o largo, para fugir ao “mar trapalhão” da zona de S. Vicente. Às 7 da tarde parecia noite cerrada. ...E já estavamos 8 ou 10 milhas fóra, ...e nada de progredir para norte. ...Viamos sempre o farol pelo través...

Pelas oito da noite, já muito afastados da costa, ...estava tudo a dormitar. ...Menos eu.

Mandei todos para a cama, e fiquei sozinho no cock-pit. ...Sempre à vela e a motor

Foi “um quarto” de 4 horas. ..À meia noite, já com bastante mar, e o farol quase na mesma posição, resolvi acordar o Carlos, para me render. ...E aí fui eu para o beliche. ...Mas não consegui dormir. O tio Zé dormia no beliche do outro lado, mas amarrado com correias. Os outros dois, na proa, como era tudo cama, estavam ferrados. ...Porém eu nada! ...No espaço duma hora caí três vezes da cama abaixo. Disseram-me depois que havia uma correia, mas eu não a encontrei. ...À terceira vez fiquei danado! ...Enfiei o impermeável e fui lá para fóra. ...“Ainda bem que vieste”, disse-me o Carlos,” porque eu quero ir tirar a genoa e não tenho piloto automático”. Não me lembro se não tinhamos mesmo piloto, ou se estava avariado. Tambem não havia enrolador. ...De qualquer modo eu nem tive tempo para chegar a conhecer o barco. ...Lembro-me que chuviscava, e a noite estava bastante fria para Setembro.

O Carlos que, como o Tabarly, nunca usava arnês, desta vez afivelou-o, e foi para a proa embrulhar a genoa, que só nos estava a complicar a vida porque o vento não parava de saltar de um lado para o outro. Quando voltou, (Ele mais tarde dizia que nem sabia porquê), engatou o arnês na amurada. ...E foi o que valeu!

Como não se conseguia progredir para norte, o Comandante resolveu regressar ao porto da Balieira, para ali aguardar melhores condições de tempo. ...Ideia que logo aplaudi! E lá vinhamos, entre piadas e comentarios sobre o mar, com o vento a rondar para a popa , até que eu fui à cabine, creio que buscar café. ...E, enquanto procurava o térmus, fui arrumando alguma coisa do muito que estava espalhado pelo chão. Quando voltei cá para fora e me sentei no cantinho, junto à cabine, diz-me o Carlos: “Já temos o vento completamente de popa, mas o mar continua do Norte, e só com o motor é que consigo manter o rumo”. ...E pouco depois: “De vez em quando vêm umas séries de seis vagas, que devem ter p’raí oito metros!” . Realmente, olhadas da cava ao topo, pareciam montanhas. ...E quando passavam por nós quase que era agradável, porque vinham muito certas. ...Vagas de embalar! ...E de repente ele deu um berro: “Olha a sétima!” ...E a sétima apareceu por cima do mastro! ...Toda preta, e branca lá em cima! O barco orçou na cava da onda e deitou-se de lado, com o mastro paralelo ao mar. A vaga escorregou toda por cima da vela grande, ...e eu ...senti-me de trenó, ...”surfando” ao longo da vela! Não tinha arnês, cláro!

Quando a espuma se desfez e o barulho parou, ...realizei que me encontrava a uns vinte metros do Rush, ...que já estava direitinho outra vez, pois que via a luz do mastro!

Aí começou a pesca. ...E o peixe era eu! ...O Canto Moniz, como tudo o que estava no cock-pit, incluindo a tampa da balsa, tambem tinha saido borda-fóra, e creio que para debaixo da vela. Mas, como tinha o arnês, embora tivesse dado uma tremenda pancada no costado, ficou firme, agarrado à borda. ...Mas sem conseguir içar-se, claro.

Os outros três, quando abriram a porta da cabine e viram o cock-pit vazio, apanharam o o maior cagaço das suas vidas, ...pois nenhum deles sabia pegar no barco, sobretudo com um mar daqueles! ...Mas nessa altura ouviram o Carlos berrar. ...E foi um alivio!

Os três, à uma, lá conseguiram puxá-lo para cima. Não sei bem se o motor nunca parou ou se arrancou no momento. O facto é que eles imediatamente começaram à minha procura.

...E todos se portaram maravilhosamente! ...De resto eu digo muitas vezes que, se ainda estou vivo, ...ao Carlos Canto Moniz o devo! ...Bem como àquela tripulação!

( Uma semana depois, em casa do Mendes Madeira, no Estoril, estivemos a ver catrapázios com histórias náuticas e estatisticas de desastres: “Homem ao mar” de noite e com mau tempo, ...tinha 4 ou 5 por cento de salvamentos. Acho que aí é que senti verdadeiro medo!

...Tenho a certeza que, com o mar que estava e a desmoralização que, na circunstância, logo se instala a bordo, e até porque de inicio não me viam em parte alguma, a maioria dos “marinheiros amadores”, ...”pessoas comuns”, teria era procurado fugir dali, voltando o mais depressa possivel para trás do Cabo de S. Vicente! )

Quando dei por mim na água, e no escuro, sem May West, e longe do barco, ...não foi muito agradável a sensação! ...Entretanto percebi que o ar que tinha dentro do impermeável, com um elástico na cintura e fechado com zip, me dava uma certa sustentação. ...O pior é que, pouco a pouco o ar ia fugindo. ...E a água estava cada vez mais fria. ...Ainda pensei em tirar os sapatos para nadar melhor. ...Mas nadar para quê? ...Era melhor morrer calçado. ...A verdade é que nunca entrei em pânico. ...A dada altura esbarrei com uma coisa branca. ...Era a tampa do compartimento da balsa, e tinha boa flutuação. ...Aí comecei a sentir-me melhor.

...E nesse momento eles a bordo encontraram uma lanterna, ...que felizmente acendia...

Quando a luz passou por mim, mostrei a tampa da balsa, e eles vieram na minha direcção e atiraram uma boia. ...Mas a boia era daquelas de ferradura e muito leve. Com vento para pouco servem. O vento pegou-lhe e, com lâmpada e tudo, passou por mim, a dois ou três metros, e às cambalhotas. ...Ainda dei umas braçadas atrás dela, ...mas ia muito rápida e eu só me cansava, e nunca a apanharia. Boias daquelas, só com retenida ou poita. Depois disso, sempre as evitei nos dois barcos que aqui tive.

Daí para a frente começou a cegada. Fizeram meia dúzia de tentativas, mas quando estavam perto de mim, o mar fazia escorregar o barco pela vaga abaixo. ..Cheguei a estar agarrado à borda e a entregar a tampa da balsa ao Carlos que, com a ânsia de me agarrar, a atirou fóra. O pior foi que o mar arrancou-me da borda ...e eu já não tinha a tampa! ...O tempo começou a piorar, e o barco tanto me aparecia a norte como a sul, a este como a oeste. (...Ou assim aparentava.) ...Há uns momentos, depois de passar a vaga, em que o mar se cala, ...e se consegue berrar. ...E eu pedia-lhes um cabo! ...”Um Cabo!”... Mas não havia um cabo no cock-pit. A vaga tinha levado tudo. ...Então o Carlos lembrou-se de pôr na água as escotas da genoa, que por sinal estavam demasiado compridas e até já tinhamos embirrado com isso. ...Mais meia dúzia de tentativas, ...mas o barco sempre escorregava, enquanto que eu, que estava cada vez mais mergulhado, não saia do lugar! ...E a lanterna deles cada vez mais fraca!

Então gritei para o Carlos: “Aponta o barco à minha cabeça!” ...E dessa vez o Rush roçou por mim, ...e eu agarrei a escota!

...No mesmo momento a escota do outro lado enrolou-se no hélice! ...E o motor parou!

...Se eu não tivesse agarrado naquele minuto, ...já não agarrava! Era o ultimo minuto!

E foi a fase final: Eles arriaram a escada do painel da popa, e eu comecei a tentar apanhá-la. ...Mas ela ia lá para cima, que até parecia uma torre, para depois vir para baixo como uma guilhotina! ...E eu fugia, quase a largar a escota. ...E lá foram mais

uns minutos nesta palhaçada. ...Até que, graças a Deus lhe deitei a garra!

...E de imediato entrancei as pernas no ultimo degrau.

...Daí para a frente foi mar abaixo ...e mar acima! ...Porém eu estava bem agarrado!

...Tinha só 55 anos, ...e feito muita caça submarina em Angola! ...Mas de qualquer maneira sentia-me completamente exausto! ...Tudo isto terá levado pouco mais de 30 minutos. ..Mas para quem lá estava ...durou horas!

Consegui finalmente subir mais dois degraus e tornei a agarrar-me, bem quietinho para

ganhar folego. ...Nessa altura o Carlos deitou-me a mão e ouvi-o gritar: “Passem-me um cabo que o Zé Toi desmaiou!” ...Ao que eu terei respondido: “Não é, ...estou só a descansar!” ...E nessa altura, aos gritos ...“Ai que me partem os braços!”, fui selvaticamente arrancado ao mar, empurrado para dentro da cabine e todo enrolado em cobertores. ...E, em seguida, o tradicional tratamento de cognaque pela guela abaixo!

Pouco depois amanheceu, o mar baixou, e tornámos a passar, desta vez de regresso, pelo cabo de S. Vicente. O percurso até Lagos foi uma beleza. O “Easy” agora a obedecer perfeitamente ao leme, sem precisar para nada do motor. (...que de resto não tinha!) , a deslizar com alegre ligeireza ...E, já com sudoeste, sempre à vela, entrou, a cavalo numa vaga, pela Barra de Lagos dentro, onde lançaram ferro os felizes sobreviventes de mais esta página da nossa heroica “História Trágico-Maritima”.

...Mas ainda me lembro de ouvir o João Paulo dizer, com um “ar zangado”, ao Eng. Canto Moniz: “Ou o Senhor compra um barco maior ...ou eu mudo de sogro”!

Combinado um envergonhado “pacto de silêncio”, durante 5 ou 6 anos foi esta aventura mantida em completo secretismo, ...até que alguém deu à lingua ...e o caso veio a público!

...Só nunca cheguei a saber quem me baptizou de “Waterproof”.

31. Dezembro. 2006

J. Sá-Carneiro (Waterproof)