sexta-feira, 6 de novembro de 2009

VIGILIA - Na Noite em que faltou a Luz Eléctrica

( REFERIDO  A  MÁRIO  DE  SÁ-CARNEIRO )

Acontece que sou primo direito do poeta Mário de Sá-Carneiro.   E quando digo isso as pessoas acham estranho, e corrigem-me: Sobrinho! …Neto?…                                                                                         -Não.   Sou exactamente primo direito. O Mário era filho do meu tio Carlos Augusto, o irmão mais velho do meu pai. É verdade que o Mário nasceu em 1890 e eu em 1927. Daí a estranheza. O tio Carlos nasceu em 1870 ou 71. Sei que só tinha mais 19 anos que o filho. Naquele tempo era assim.

E o meu pai, Vasco, viu a luz à entrada do  século XX.

O Carlos era filho do primeiro casamento do meu Avô José Paulino de Sá Carneiro Júnior. Tendo acabado engenharia-militar, e casado ainda muito novo, veio sua mulher a falecer pouco depois, com o Mário ainda bê-bê, o que ele não conseguiu suportar, pelo que arranjou um lugar no Caminho de Ferro de Lourenço Marques. O Mário foi criado pela minha Avó Maria da Anunciação, que o adorava. O tio Carlos poucos anos depois era director dos Portos e Caminhos de Ferro de Moçambique, e creio que só voltou em definitivo para Portugal já depois do suicídio do Mário, em Paris, em 1916.

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Eu vivia em Luanda desde 1942, para onde tinha ido com minha mãe, Pilar e minha irmã Lacas, pois que o meu pai lá tinha sido colocado, como Director das Alfândegas, no ano anterior.

Quando fui chamado para o Serviço Militar, em 1947, como tinha um brevet de PPA, requeri para fazer a tropa na Força Aérea, em Portugal, pois não existia em Angola. Requerimento deferido, vim para Lisboa, mas não consegui ingresso naquela Arma, e acabei a servir em Infantaria,

…Não foi mau! Depois da Escola de Sargentos Milicianos, fui parar a Lagos, ao Batalhão de Caçadores 4.

Na pensão de Lagos conheci o Antero Campos de Figueiredo, ali professor do Liceu, e filho do célebre Reitor da Universidade de Coimbra.

O Antero tinha mais dez anos do que eu , mas era muito simpático e conversador. Tinha um pequeno barco à vela e convidou-me algumas vezes para umas voltas. Era um intelectual, literato, extremamente versado em Pessoa e Sá-Carneiro. Quando lhe disse que era primo do Mário ficou encantado, e passámos alguns serões a falar e até a recitar os dois poetas. Mas quando uma vez afirmei que eles às vezes eram muito parecidos, discordou profundamente. E afiançou-me que distinguia perfeitamente os estilos, nunca os podendo confundir. Tive que me calar !

Mas uns dias depois, ao jantar, na pensão, pus um ar entusiasmado e anunciei que tinha "uma coisa para lhe mostrar: Uma pequena poesia, que a minha Avó me mandou, e que ela própria não sabe se é do Mário ou do Fernando Pessoa" ( Que, em vida do Mário, era visita assídua lá de casa.)

Quando lha mostrei disse logo: "A letra não é de nenhum deles".

"Pois não, a letra é minha, A folha vinha escrita à máquina e já a devolvi".

Leu e releu atentamente, virou-se para mim com um ar muito sério, e declarou: "Não tenho a menor dúvida! Isto é Sá-Carneiro, …genuíno. Mas ele devia ser muito novo quando escreveu esta poesia, pois a forma é ainda incipiente. Mas é Sá-Carneiro de certeza". E levantou-se para recitar.

(Tenho que deixar aqui uma nota: O pai do Mário, tio Carlos, além de engenheiro, tinha o fraco das engenhocas. Teve automóvel, quando isso era ainda uma raridade, importou um dos primeiros esquentadores a gás, gramofones e até um grande gerador eléctrico, com que iluminava a quinta de Camarate, acabando por fornecer luz grátis aos vizinhos ali à volta.

O Mário gostava muito de fazer retiros na quinta, sobretudo para escrever. Mas queixava-se à minha Avó que, quando o gerador tinha avarias, como o pai estava em Moçambique, era muito difícil vir alguém arranjar a luz.).

 

VIGILIA                                    

Na noite em que faltou a luz eléctrica

E se acenderam nos castiçais as velas

Os duendes entraram pelas janelas

E vieram rodear-me no salão

 

Um tom vago de medo veio então   

Envolver os  reposteiros  vermelhos                                                             

E a projecções difusas pelos espelhos

Sinistraram-se os ornados de oiro

 

(Oh minha sorte,  minha sina  e meu agoiro!)

 

Mas afinal qual foi o mal que fiz?                                                         

Porquê o bom menino, que eu era                                                           

Ser tratado agora como fera                                                                           

E julgado nessa noite,  sem juiz?

 

…E daqui do meu salão acolchoado                                                            

A damasco, com flores de lis,                                                                    

Fiquei a vê-los a transmigrar meu ego                                                    

Para esse “Mundo Astral”, que nunca quis

 

(Meu”Intelecto” transmutado em “Alma”                                              

Já nem mesmo no Mundo Astral se salva!)

                                           ______________  

Há uns dias, a remexer em livros, encontrei, dobradinha, dentro de um deles, a tal poesia, acima transcrita, que o Antero recitou.

E então comecei a relembrar, com carinhosa saudade, aquela disparatada brincadeira:        

Quando o Antero, muito solene, acabou de recitar, eu já estava quase sem coragem para lhe dizer a verdade. …Mas tinha que o fazer!

"Oh Antero, é verdade, é Sá Carneiro com certeza, …mas não é do Mário!"

Ficou a olhar para mim com um ar espantado: "Mas há mais algum?"

"Não, poeta não há, …mas foi este aqui, …fui eu que a escrevi ontem à noite, …só para me meter consigo".

Quase que me matava, mas depois foi abrandando e acabou por me dizer que ia publicar a poesia na revista da Universidade de Coimbra.

“Oh Antero, nem pensar, isto não presta para nada! Isto é só uma brincadeira, que eu fiz para nos rirmos um bocado. Uma baboseira sem qualquer valor! …Fui buscar umas imagens à maneira do Mário: ´Transmigrações', 'ornatos de oiro´, etc. …e já estava! “

“…E nunca iria tentar publicar poesia só porque era primo do poeta!

…Sá-Carneiro, há só um!"

…Lá acalmou.

Poucos dias depois troquei Lagos por Mafra, onde acabei o serviço militar.

Encontrei o Antero Campos de Figueiredo duas ou três vezes em Lisboa,

E depois voltei para Angola.

Espero que ele ainda esteja em vida, mas terá 92 anos.

…É com muita saudade que recordo esses tempos.

Cascais, 22. Out. 2009

Zé Sá-Carneiro

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