quarta-feira, 11 de novembro de 2009

O MALOGRO DE STALINGRADO

O HOMEM  QUE  DERROTOU  A   ALEMANHA

           Cascais, 11  Nov. 2009                                    J. Sá-Carneiro

A  conversa teve lugar na varanda dos meus sogros, em Luanda, aí por 1958, ou 59,  pois que me lembro que estava casado havia pouco tempo.                           …E durou praticamente a tarde inteira.

Meu sogro, Otto Ullerich, muito aventureiro na sua juventude, tinha deixado a Alemanha em 1910, com 25 anos,  para quatro anos depois já  ser proprietário de uma pequena “farm” de copra, no extremo leste da Nova-Guiné, ao tempo colónia alemã.

…Mas então estoirou a Primeira Grande Guerra.  …E, claro, perdida a guerra, o meu sogro perdeu a “farm”, acabando por regressar à Alemanha, em 1918, como grumete de um cargueiro japonês, para vir  enfrentar os piores oito anos da sua  vida.             …Mas entretanto  casou.

Em 1926 apareceu-lhe um amigo, julgo que dos tempos da Nova Guiné, a desafiá-lo para irem juntos para Angola, de que ele  nunca tinha ouvido falar, mas que o outro dizia ser a melhor terra do mundo para os projectos agrícolas que ambos acalentavam.  Levado pelo entusiasmo do amigo, logo ali resolveu  aceitar o desafio.  

…E é assim que,  dois anos depois, estão ambos instalados, em duas demarcações  para café, a poucos quilómetros uma da outra,  em plena região florestal do Pango-Aluquem,  nos   Dembos  -   Angola.

Quando, dez anos mais tarde, começou a Segunda Guerra Mundial, meu sogro, já muito fora da idade militar, deixou-se ficar pelos Dembos, onde a   agricultura  da sua fazenda o absorvia por completo.   Porém o amigo, von Morgen, embora fosse até um pouco mais velho do que ele, resolveu partir para a Alemanha, onde foi  tomar as  funções de Correio Diplomático,  como já tinha feito em 1914.

E aqui começa esta história:   Von Morgen foi colocado em Tóquio, numa posição de responsabilidade, pois que o Japão tinha já estabelecido com a Alemanha o chamado Pacto Anti-Komintern,  de largo âmbito  politico-militar, e destinado a combater a URSS .   Em Tóquio conheceu um outro correio diplomático, Richard Sorge (Leia-se Zórga), também alemão, mas parece que nascido em Baku, na antiga  Russia,  filho de mãe russa e pai prussiano,  homem de estupenda presença, extrema simpatia, e magnética captação de  amizades, acontecendo terem em breve ficado intimos amigos.                      

Como o Japão também estava em Guerra, com a China, onde já tinha estabelecido o Manchuco, era extremamente complicado conseguir acomodação em Tóquio.  …Mas lá descobriram um pequeno apartamento, só com um quarto, onde dificilmente se acomodaram os  dois.         …E estas noticias, de 1940, tinham sido as ultimas enviadas por  von Morgen.

Ora naquela manhã o pai Otto estava excitadíssimo porque tinha recebido um telefonema do amigo, a dizer que chegara a Angola, num cargueiro da CUF, e que estava hospedado num hotel de Luanda.    O encontro ficara marcado para as três da tarde, lá em casa, e convidava-me a assistir, porque poderia ser interessante.

Aqui tenho que saltar uns 15 anos para trás, e reportar-me ao que meu sogro me contou, nessa manhã, quanto à  partida de von Morgen para a guerra.

As roças por eles implantadas  no Pango, chamaram-se Kissokolo, a do meu sogro, com mil e poucos hectares, e Montes Hermínios, a de von Morgen, talvez com o triplo do tamanho.      À partida deixou Morgen as plantações, e todo o resto dos seus negócios, entregues a um gerente, também alemão, da sua inteira confiança.                                                                                                           

Aconteceu entretanto que, tendo a Alemanha perdido a guerra, foi von Morgen inscrito, como ex-inimigo, na Lista Negra do Commonwealth e impedido, pelo Consulado Britânico em Luanda, de regressar a Angola.   Assim, enviou de Hamburgo procurações, com plenos poderes, ao tal gerente alemão, e foi esperando, durante todos aqueles anos, que o Commonwealth o retirasse da  “lista negra”, para poder regressar.     …E agora, à sua chegada, o gerente não queria entregar-lhe a fazenda que, não sei como tinha conseguido passar para o seu nome, e alegava que tudo lhe pertencia.                                                                                                               

E esta visita ao meu sogro era para se aconselhar, pois que, por outro lado,  estava com pouco dinheiro pagar a advogados.

Com dois ou três telefonemas, ficaram as demarches combinadas para os dias imediatos, e sei que tudo veio a resolver-se, não bem como  Morgen queria, mas de modo mais ou menos satisfatório.

Porém do que quero  falar-vos  agora é do resto da conversa, que durou pela tarde fóra, em  que o Morgen nos contou as suas atribulações no Japão e do tremendo efeito que a interferência do Richard Sorge veio a ter no desenrolar da 2ª Guerra Mundial.

Quando tinha começado a 1ª Grande Guerra, em 1914, Richard, como filho de alemão, achou que devia alistar-se, pelo que logo correu para a Alemanha  para frequentar um curso de oficial miliciano.  Tendo combatido nas várias frentes, logo após a rendição, face a uma  invulgar inteligência, que detinha, além das suas muitas outras qualidades, de imediato se matriculou na Universidade de Hamburgo, onde acabou  doutorado em Ciências Politicas.      Podendo assim filiar-se, em posição de destaque, no Partido National Sozialist (abrev. Nazi)  que nessa altura começava a impor-se.    Após uns anos de missões,  mais ou menos importantes, como correio diplomático, acabou por ser colocado em Tóquio, onde veio a relacionar-se com Von Morgen.

E eu, hora após hora, bem acompanhado da cerveja Löwenbrau, que o Pai Otto recebia da Alemanha,  ia ouvindo deliciado todas aquelas histórias.  Von Morgen tinha já quase esquecido o seu pouco português, e punha-se a falar alemão, que eu mal entendia, e aí era o meu sogro que tinha de traduzir.            Até que, já por altura do pôr-do-sol, quando começava a refrescar na varanda, porque era cacimbo, veio finalmente o desenlace.

É que Sorge, além de  enorme encanto pessoal, no corrente das suas relações sociais, parece que detinha ainda muito mais “charme” quando se tratava de aproximação a mulheres.       …E o sacrificado era von Morgen, que tinha que suportar esse “inconveniente”.  Pois que  como só havia um único  quarto, via-se  constantemente obrigado a aguentar horas a fio  no café da esquina, à espera que o amigo Richard despachasse as suas conquistas.  Ficando muitas  vezes em tremuras, pois que elas eram de perigoso gabarito,  …e ele, de longe, do café, até ia reconhecendo algumas:   …Mulheres de diplomatas de várias nacionalidades, japonesas da melhor sociedade de Tóquio, de todas as idades, e até, para variar, muitas das chamadas “mundanas”, conhecidas na alta roda, e sempre também da máxima categoria.     …E  um  dia viu entrar  uma, que conhecia  de vista,  …e que o deixou aterrado, pois sabia que ela era a amante dum generalíssimo nipónico, que constava estar envolvido nos secretíssimos planos para uma “campanha mistério”  que os altos comandos estavam a preparar.         

…E veio o resto da história:         O Japão queixava-se que os U.S.A. travavam e impediam,  de todas as maneiras,  a sua expansão comercial e industrial no Pacifico.    E  a  Alemanha pressionava o Japão para que a deixasse acabar com os russos, para só depois tratarem dos americanos.    E  por isso pedia-lhe  que  atacasse, ou pelo menos empatasse, as  120 ou 130 divisões russas que estavam, havia um ano,  na fronteira da Manchúria, frente a frente com outras tantas divisões nipónicas, prontas a invadir.    Mas para vencer a URSS  era preciso tomar Stalingrado, onde os russos continuavam teimosamente a resistir.    …E os alemães esperavam a Primavera.

Assim o Japão hesitava entre as duas opções.  Guerra aos russos, ou aos americanos?       …Mas a  facção mais agressiva do exército japonês queria lançar-se de imediato sobre as posições norte-americanas do Pacífico.       …E  ia-se mantendo este impasse…      Até que, de repente os USA fazem a graça de cortar (Ou tentar cortar) o abastecimento de petróleo ao Japão.

E essa foi a espoleta da brutal e explosiva fase que  se seguiu:          A  facção japonesa extremista resolveu mesmo atacar os americanos, e o primeiro alvo seria Pearl Harbour.   Mas para fazer a ocupação das muitas posições a conquistar, o  Japão precisava das divisões da Manchúria, resolvendo assim retirá-las em segredo. E como os russos tinham ali pouca aviação, nem    dariam por isso, pois que ficava   lá o suficiente para disfarçar.

Então aconteceu que o general,  nas volúpias da cama, contou à amante que as cento e tal divisões da Manchúria passariam, em breve, a ser meia dúzia.                                                                                    E, em nova sessão de volúpias na cama,  …a japonesa contou            ao Sorge!

E é assim que, quando o exército germânico,  já extremamente debilitado,  quase sem munições, sem aviação e sem comida  (Uma maçã, como prato único, cortada em quatro,  dava  para quatro soldados, água em cima para a maçã inchar, e depois a pastilha de vitaminas), mas ainda cheio de coragem,     …se preparava para, com a chegada da primavera, tomar de assalto final a  sacrificada e moribunda Stalinegrado,      …eis que apanha com cem divisões russas em cima,  perfeitamente armadas e completamente frescas, pois nunca tinham chegado a entrar em combate, e que como um furacão esmagam os restos do que tinha sido a fabulosa Wehrmacht        …e acabam com as ultimas esperanças de a Alemanha ainda poder ganhar a guerra.

Poucos dias depois a policia militar japonesa entrou de rompante pelo apartamento dentro e deteve  os dois alemães.  

Von Morgen parece ter conseguido comprovar facilmente a sua inocência.                                                                                                                …Mas  Sorge foi, pouco tempo depois, condenado à morte.    

E  nem me recordo bem, mas parece-me que já foi depois da condenação do “amigo”,  que Morgen conseguiu autorização para o visitar, e foi aí que ele lhe contou que, ainda antes  da campanha da Polónia, já era espião duplo,  …na verdade espião russo.   …Que quando da invasão, tinha sido ele que avisara o Kremlin que 170 divisões alemãs iam atravessar a fronteira da União Soviética.      …E agora com o Japão, só tinha tido que dizer ao Kremlin que  já  não havia japoneses na fronteira da Manchúria.

E acabou por justificar-se contando que, quando criança, assistiu a várias cenas, de choque e dureza, de seu pai com sua mãe,  que o levaram mais tarde a optar pelo lado Russo, …embora tivesse aproveitado da Alemanha tudo o que dela conseguiu obter.

Julgo que uns dias depois foi mesmo executado.

 

Já era noite e estava fresco demais para se estar na varanda.         Entrámos para a sala, para mais uns copos e umas tapas, mas     não se voltou a falar do Japão.  Pouco depois fomos levar von Morgen ao Hotel Avenida.                    

Sei que resolveu os seus problemas, e voltou para a Alemanha ,   mas  não  o tornei  a ver. 

                       JSC

Sem comentários:

Enviar um comentário