quarta-feira, 9 de junho de 2010

ANGOLA CRIOULA

                                                                                             ( MEMÓRIA)

ANGOLA CRIOULA - I

- Terá sido em 77 ou 78. Meia dúzia de refugiados portugueses, de Angola e Moçambique, à conversa num café de Joanesburgo. O José Ramalho, ex-redactor, creio que do “Noticias” de Lourenço Marques, e que estava na altura a trabalhar numa revista sul-africana chamada “To the Point”, preguntava-me porque é que o Savimbi chamava à Jamba “Capital da República Negra de Angola”. Claro que eu não sabia, ...mas fui alvitrando que talvez fosse por Angola não ser ainda...“Negra”, ...embora independente. ...Perguntou-me o que seria então Angola. Respondi-lhe que, a meu ver, Angola estava a caminho de voltar a ser crioula. “Crioula” como na verdade já tinha sido, no tempo colonial, e talvez como definitivamente acabasse por voltar a ser.

- ...Mas afinal o que era isso de “crioula”?

- Tenho um velho dicionário, intitulado “Thesouro da Lingua Portugueza”, da autoria do Dr.Frei Domingos Vieira, editado no Rio de Janeiro em 1873, que diz que “crioulo é o homem ou mulher brancos, originários das colónias”. Também diz que “negro crioulo é o nascido na colónia, em opposição ao proveniente do tráfico”.

O Larousse diz que “crioulo” ( creole ) é “Pessoa de raça branca nascida nas colónias”.

A Enciclopédia Britânica define “creole” como o termo que e usava, do Sec. XVI ao Sec. XVIII, para indicar pessoas brancas, nascidas na América Espanhola, filhas de pais espanhois.

O dicionário norte-americano Funk & Wagnalls diz que crioulo é um descendente de colonizador francês ou espanhol, da Luisiana ou dos Estados do Golfo e que mantém os seus especiais dialecto e “cultura”. Diz ainda que “Creole State” é o nick-name da Luisiana.

Sabemos que pelo correr do Sec.XIX se passou a chamar tambem crioulo ao africano negro que falava e escrevia o português ( Ou francês ou castelhano ) e, naturalmente, aos mestiços resultantes das duas raças. Passava assim o termo “crioulo” a definir e caracterizar uma determinada “cultura”, em vez de qualquer conceito de “raça”.

- Mas em 1942 quando, com 15 anos, cheguei a Luanda, teve esse vocábulo para mim muito mais impacto e significado que todas estas definições meio abstractas. “Crioula” era a população angolana ( branca, mestiça ou preta ) de expressão portuguesa, que constituia a maior parte da comunidade civilizada das cidades e vilas da colónia.(Brancos nascidos lá, muitas vezes de várias gerações, mas tambem outros que para lá idos em crianças, tinham adquirido o sotaque e os modos e mentalidade dessa extremamente gentil comunidade)...E ser crioulo era um modo de estar na vida. Era fazer parte duma “Cultura” muito especial, detentora duma sensibilidade e dum encanto, que só podia ter florescido dentro da Cintura dos Trópicos. Os crioulos de Angola seriam ao tempo um milhão. Na sua maioria de raça negra, cláro. A restante população da colónia estava ainda, a vários estágios, no caminho desse processo de assimilação. ...Mas eram crioulas muitas das familias, a que felizmente tive acesso       ( brancas, mestiças ou pretas ) mais consideradas de Luanda           ...Nunca vi ninguém receber melhor em sua casa!      ...E, quando se abeirava o fim do ano, disputavam-se os seus convites para as festas de Réveillon. ...Meu Pai, chegado um ano antes, explicava-me todo aquele esquema social. Dizia-me que Cabo Verde não era a única colónia portuguesa crioula. Que também Angola o era, embora aí se falasse um português muito mais próximo do europeu do que o dialecto caboverdiano.

Dizia-me ainda que essa população crioula, se um dia Angola viesse a ser um País independente, seria a sua grande vantagem face a qualquer outro estado africano. ..Levou-me ao que chamou a Capital Crioula de Angola - Benguela - , onde havia muitos senhores brancos casados com senhoras pretas, mas o contrario tambem ali com frequência acontecia.

- Voltei a Benguela pelo final de 1991 e passei o Réveillon no Sporting.

...O cenário social era exactamente o mesmo que eu conhecera cincoenta anos antes.

 

ANGOLA CRIOULA - II

É evidente que havia outras comunidades civilizadas em Angola naquele tempo. A dos funcionários públicos em comissão de serviço, por exemplo: o caso de meu Pai. Mas a aproximação era extremamente fácil, e assim me foi possível beneficiar das duas culturas, o que ainda hoje considero das melhores benesses que a vida me deu.

...Mas essa maravilhosa Cultura Afro-Portuguesa, que tinha feito o Brasil e que tão característica e vigorosamente se fazia sentir quando conheci Angola, estava condenada, sob as vagas sucessivas de neo-colonos dos anos 50 e a ocupação militar dos 60 e 70, a quase se extinguir. Pouco a pouco foi-se diluindo. Os seus mais caracteristicos representantes foram desaparecendo, e esse tão simpático “modus vivendi tropical” foi-se quase por com-pleto submergindo. ...Como lingua, não chegara sequer a ser um dialecto, ...mas era um português dum muito peculiar sotaque, doce e cantante. ...Era “música”! ...E já quase que não se ouvia falá-lo. ...Como Cultura? ...Não me será fácil expressar essa cultura crioula, muito mais de sentir do que de compreender, ...que, para alem da nossa de portugueses, nos dava acesso a outras regiões do entendimento, ...que nos transportava a uma espécie de “euforia lúcida”, ...que nos levava a um melhor relacionamento com tudo e com todos e a achar que, à nossa volta , todas as coisas e todas as situações eram fáceis e perfeitamente naturais.

...Raças? ...Acho que ninguém falava de raças naquele tempo. ...Ou se falava era sem acinte nem maldade. Toda a gente se ajudava. ...Se o branco era “paternal”, ...juro-vos que isso não iria de modo algum ofender o preto, antes pelo contrário.  ...Ninguém era estúpido!

E a posição inversa também se verificava: Eu, por exemplo, posso dizer que fui tratado com natural paternalismo por um Senhor preto, funcionário das alfandegas, naquele tempo patrão das lanchas, que se deslocavam aos navios nos dias de “S.Vapor”, e que se chamava Antonio Pitra. Foi ele que me ensinou a pilotar barcos e guiar automóveis, bem como muitas e muitas outras coisas, que sempre me serviram durante os perto de 40 anos que vivi em África.

Quando em 1991 voltei a Luanda, o Pitra convidou-me para almoçar em sua casa, no Bairro do Cruzeiro. Era uma daquelas casas grandes, com varanda colonial, que eu tinha conhecido, no tempo da colónia, como residências dos altos funcionários.

Em redor da enorme mesa estavam 7 ou 8 dos seus filhos e filhas, quase todos formados, em medicina, em direito, etc.  Ele à cabeceira e à sua frente a Dona da casa, que eu também conhecia desde garoto. Fiquei ao lado do Pitra e durante todo o almoço (muamba) ele não me largou o pulso, obrigando-me quase que a comer só com uma mão, ...e era bem visível a sua comoção enquanto conversávamos. ...Infelizmente estava com oitenta e muitos, e morreu no ano seguinte.

Se aceitamos que uma “cultura” é na verdade como que um “permis de conduire” dentro duma “comunidade”, por dela termos alcançado suficiente conhecimento, então a Cultura Crioula de Angola era o Permis que tanto servia para nos guiarmos ( Pretos, Mestiços ou Brancos ) pelos “Arruamentos de Civilização”, que para ali tinham sido transplantados , como pelas “Bárbaras Sendas do Mato”, que tanta felicidade e tão generosa liberdade transmitiam, e das quais sentimos hoje a mais dolorosa saudade.

...E essa “cultura” perdurou! E há assim que reconhecer que a enorme supremacia ( moral e intelectual ) de Angola sobre a maioria dos outros novos países africanos, provem exactamente dessa sua formação cultural Afro-Lusa, ...tão forte, ...tão intima, e tão única em todo aquele Continente.

...E eram estes “angolanos de cultura crioula”, na variedade exuberante das duas raças e suas combinações,  inesperadamente ressurgidos, de todos os lados, no momento fulcral da independência - que eu dizia ao jornalista José Ramalho terem sido os verdadeiros herdeiros dos portugueses. ...Dessa herança que se chama Angola!

...Claro que Angola Crioula é muito mais que tudo isto. ...Só tentei dar uma ideia!.

 

ANGOLA CRIOULA - III

Sabemos contudo quão difícil tem sido a consolidação desta ”civilização crioula” em Angola.

...Dificuldade que irá persistir até ao momento em que o País inteiro possa sentir que é afinal crioulo também. ...E que seja capaz de enfrentar, e vencer, as poderosas correntes internacionais que gostariam de ver instalar-se em tão rico e portentoso território outras “culturas” mais fáceis de “manipular” ...e “espoliar”!

( Também muitas vezes nos queixamos de que os crioulos não trataram com a esperada fraternidade muitos portugueses, ...”que lá podiam ter ficado”! ...Mas não nos esqueça-mos de que naquele momento não eram eles que tinham “a palavra”....E de que, de certo modo e em várias fases, também a eles Portugal abandonou. ...Não esqueçamos que muitos e muitos foram, tal como nós, obrigados a exilar-se.    ...Que outros terão sido tragicamente imolados pela tremenda confusão que se seguiu à independência...E muitos continuam ainda a sacrificar-se, todos os dias, tantas vezes até à morte, ...afinal para que Angola continue a ter essa Cultura Crioula-Portuguesa, ...que sempre sentiram ser a sua. )

Fala-se, com declarado entusiasmo, dos PALOP’s. ...E com certeza que tentar promover uma união de povos pela sua afinidade fonológica será sempre iniciativa de louvar, bem como todo o movimento que daí se gerou.    ...Mas língua, só por si, pouco significaria sem a forte envolvente, e o apoio, duma “cultura”, da qual ela seja a forma natural de expressão. ...Acabaria fatalmente degenerando numa espécie de oco brouhaha,   ...como tantas vezes acontece.

...Em Moçambique, por exemplo, também ficou a língua, mas não ficou a “cultura”. ...E isso porque na realidade nunca lá existiu aquilo a que podemos chamar uma comunidade crioula. E até que uma língua, desprovida da sua correspondente entourage cultural, está condenada a rapidamente desaparecer.

...Todos sabemos perfeitamente que aquilo que poderíamos classificar como “real e genuína cultura portuguesa”, a nossa cultura europeia, ...essa não ficou em parte nenhuma! ...Não em Macau, ...nem na Índia, ...nem no próprio Brasil ( Afinal também basicamente formado por estados crioulos, equivalentes à Luisiana ).

O que, por toda a parte, deixámos foram culturas mistas, de base portuguesa, é verdade, mas muito mais adaptadas aos diferentes cantos do Mundo por onde as soubemos espalhar, e onde, nalguns casos, irão perdurar ainda por séculos.

(...Talvez que Cabo-Verde, apesar de todas as carências, possa ser considerado, em seus aspectos social e cultural, como um perfeito exemplo do sucesso “luso-crioulo” em África )

...Penso que, tanto como a Lingua, é essa Cultura que sempre ligará Angola a Portugal.

Não estou à altura de aqui referir aspectos artisticos ( Pintura, escultura, música, etc.) ou literarios, por exemplo, em que sabemos ser a cultura angolana original, exótica e profusa.

...A abordagem de componentes religiosas desta cultura, que se coloca para alem das minhas capacidades, essa deixo-a para quem quiser prosseguir com tão aliciante proposta.

...Resta-me agora tomar a liberdade de lançar, daqui, das colunas desta Revista, o meu repto e convite àqueles que sabem e podem explicar esta “Angola Crioula” muito melhor do que eu, para que o façam! ...Porque me parece extremamente importante fazê-lo! Creio que, de certo modo, isso viria ajudar um pouco a corrigir certos conceitos e a reequacionar determinados problemas, ...sempre com vista ao difícil objectivo de aclarar no possível as desastrosas dúvidas em que aquele sacrificado País continua a debater-se.

E esse vosso contributo, que visaria, como primeira etapa, reconhecer e definir uma “Cultura Angolana”, poderia afinal vir a ter relevante importância para o futuro de Angola e o reforço dos seus laços com Portugal, e para o arranque definitivo dum verdadeiro Projecto Conjunto, que só poderia trazer vantagens e felicidade aos nossos dois Países.

José António de Sá Carneiro                          Out. 2000

1 comentário:

  1. Exmo. Sr jose Sa Caneiro ou se posso dizer (Sr. Ze To como o meu pai o chama).
    Eu chamo-me Ana Pitra sou filha do Cardeal o filho mais velho do Sr. Antonio Pitra a que se refere acima.
    Fiquei muito comovida com a descrição que fez do almoço de família, seria um prazer ouvir mais historias. E claro penso que nao sera preciso dizer que o meu pai teria o maior gosto em voltar a revelo.

    os melhores cumprimentos,

    Ana Pitra

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